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Comecemos pelos números. Nesta 70ª edição do Festival de Cannes estão em competição pela famosa Palma de Ouro 19 filmes. Passemos à lista:
- Loveless, de Andrey Zvyagintsev
- Good Time, de Benny Safdie e Josh Safdie
- You Were Never Really Here, de Lynne Ramsay
- L’Amant Double, de François Ozon
- The Square, de Ruben Östlund
- Jupiter’s Moon, de Kornél Mandruczo
- A Gentle Creature, de Sergei Loznitsa
- The Killing Of A Sacred Deer, de Yorgos Lanthimos
- Radiance, de Naomi Kawase
- Le Jour D’Après, de Hong Sangsoo
- Le Redoutable, de Michel Hazanavicius
- Wonderstruck, de Todd Haynes
- Happy End, de Michael Haneke
- Rodin, de Jacques Doillon
- The Beguiled, de Sofia Coppola
- 120 Battements Par Minute, de Robin Campillo
- In the Fade, de Fatih Akin
- Okja, de Bong Joon-Ho
- The Meyerowitz Stories, de Noah Baumbach
Numa lista que inclui nomes como Sofia Coppola, Yorgus Lanthimos, Todd Haynes ou Michael Haneke é estranho que os nomeados possam gerar qualquer outro sentimento que não respeito ou prestígio, mas a verdade é que esta edição está envolta em muita polémica e a culpa é da Netflix. Voltando à lista, o problema reside nos últimos dois filmes. Okja e The Meyerowitz Stories têm a assinatura da plataforma digital e não vão ter estreia em sala.
A sua presença entre os nomeados foi altamente contestada pela Federação Nacional dos Cinemas Franceses e pelo júri, este ano presidido por Pedro Almodóvar. O realizador espanhol disse mesmo que não daria a Palma de Ouro a um filme que não estreasse nos cinemas: “Pessoalmente não consigo conceber que a Palma de Ouro ou qualquer outro prémio seja dado a um filme que não podemos ver no grande ecrã”, disse Almodovar. “Isto não significa que não estou a aberto ou não celebro as novas tecnologias. Faço-o.” A organização do festival teve que reagir e acabou por decidir, que a partir do próximo ano, as regras vão mudar: só poderão competir filmes que tenham garantia de estreia comercial nos cinemas em França.
Do júri fazem também parte figuras como Jessica Chastain, Paolo Sorrentino e Will Smith, que desde cedo interferiu na polémica. Na conferência em que Almodóvar deixou claro o seu ponto, o actor norte-americano defendeu o Netflix, dizendo que os filhos vão ao cinema duas vezes por semana e também assistem aos conteúdos da plataforma na televisão. “Não existe muita diferença entre irem ao cinema e verem o que querem ver no Netflix em casa. (…) [Os meus filhos] conseguem ver filmes que de outra forma nunca iriam ver. O Netflix é excelente por isto. Existem filmes que não estão em exibição a 13 mil quilómetros. Eles conseguem encontrar esses artistas.”
Mas Will Smith não é uma figura propriamente isenta nesta discussão. A Netflix supostamente desembolsou mais de 90 milhões de dólares para o próximo blockbuster do norte-americano: Bright (um thriller policial passado num mundo semelhante ao nosso mas que contém criaturas fantásticas como duendes, yep).
Dos dois filmes envoltos em polémica, o primeiro a ser exibido foi Okja, de Bong Joon Ho, no passado dia 19. Na projecção, o nome Netflix no genérico foi recebido com vaias e assobios, mas Joon Ho recebeu toda a situação com alguma elegância. Diz-se grande admirador de Almodóvar e garante ficar orgulhoso pelo simples facto de ele ver o seu filme no grande ecrã de Cannes. Tilda Swinton, protagonista do filme (e co-produtora), que já foi por duas vezes jurada no festival, lembrou que há muitos filmes, de Cannes mas não só, que as pessoas não vêem em sala. E deu a entender, aliás, que a distribuição de Okja apenas no serviço de streaming não é um assunto encerrado. Elogiou a liberdade que o Netflix deu a Bong para ele exprimir a sua visão – o realizador foi explícito ao dizer que lhe confiaram um orçamento de envergadura para ele fazer o que quisesse – e rematou que não veio a Cannes à procura de prémios mas para mostrar o filme naquele enorme ecrã da Sala Lumière.
A questão dos orçamentos é um dos principais pontos de toda esta polémica. Os críticos acusam a Netflix de comprar os cineastas com verbas chorudas e liberdade criativa total, fazendo-os esquecer que, assinado o contrato, estão a privar milhões de telespectadores de terem acesso à sua obra, pelo menos aqueles que não são subscritores da plataforma.
Com The Meyerowitz Stories, o caso muda ligeiramente de figura. Em primeiro lugar, é protagonizado por (pelo menos) duas figuras peculiares ao universo de Cannes: Ben Stiller a Adam Sandler. E contra todas as probabilidades, parece que o filme é bom. A imprensa internacional não tem parado de admitir, com surpresa, que Adam Sandler está – FINALMENTE! – bem num filme e que o seu papel pode mesmo vir a dar-lhe um Óscar, referindo ainda que The Meyerowitz Stories é, sem dúvida, o melhor filme Netflix de sempre. Nesta comédia dramática escrita e dirigida por Noah Baumbach, Sandler e Stiller são dois irmãos que retornam à sua cidade natal para passarem tempo com o pai doente (Dustin Hoffman). Emma Thompson também está no elenco, interpreta a terceira mulher de Hoffman com problemas com álcool.
Also it's incredibly fucking frustrating how good Adam Sandler can be when he's not making Adam Sandler movies.
— david ehrlich (@davidehrlich) May 21, 2017
Este caso é um pouco diferente do de Okja, porque o filme de Noah Baumbach foi adquirido pela Netflix quando já estava pronto, sendo que, por isso, a sua exibição nos cinemas só foi restrita posteriormente. Já em Cannes, Baumbach disse que o filme foi feito com dinheiro independente, comprado pela Netflix já em fase de pós-produção e sublinhou que: “O filme foi feito para ser mostrado no grande ecrã. (…) O cinema é uma experiência singular que não deve desaparecer.”
O futuro dirá o que vai acontecer com estes dois filmes, e com todos os telefilmes que parecem querer impor-se como o futuro óbvio do cinema. A discussão continuará por muito tempo, e trará à baila outros assuntos como a relação entre cinema independente e cinema comercial. O vencedor da Palma de Ouro é conhecido dia 28, o último dia de festival.