Um terramoto que abalou o pensamento universal

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Alegoria ao terramoto de 1755, pintura por João Glama Ströberle (1708-1792); fotografia produzida durante a actividade do Estúdio Mário Novais (1933-1983); cortesia de Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, CC BY-NC-ND 2.0

Um terramoto que abalou o pensamento universal

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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A imagem de Deus na filosofia e o sentimento de identidade nacional terão sofrido um abalo tão grande como o das placas tectónicas.

Que o terramoto de 1755 foi um acontecimento marcante e de um alcance global não é difícil de imaginar até à luz dos desastres que hoje nos habituámos a testemunhar. Mesmo sem o desenvolvimento tecnológico dos últimos 300 anos, sobrevivem testemunhos de uma destruição de tal ordem que não nos deixa duvidas do carácter global da tragédia. O movimento das placas tectónicas que sustentam este pedaço de terra e os desastres que lhe seguiram, deixaram a nu a fragilidade do homem, da sua organização e do seu conhecimento, das suas explicações, perante a natureza.

Um abalo no pensamento global

Se até ao século XVIII o homem entregava a explicação dos desastres à causa divina, com o terramoto de 1755 a realidade exaltou-se e fez escassear metáforas e significados religiosos que conseguissem explicar a dimensão de tal fenómeno. A força da natureza foi de tal ordem evidente que as réplicas – reais e simbólicas – sentiram-se em toda a parte. Entre a história que se escreve da ciência atribui-se a uma dessas réplicas, sentida 17 dias depois, papel central nos primórdios sismologia. Terá sido uma réplica sentida em Boston que permitiu a John Winthrop observar algumas das primeiras propriedades dos sismos – conclusões apresentadas 25 dias depois do sucedido em Harvard, numa palestra icónica e num tempo em que as conclusões científicas ainda eram anexo, a que se seguiu uma extensa e detalhada publicação na compilação Philosophical Transactions da Royal Society

Captura de imagem via Royal Society Publishing

“This is a Mix’d state; in which there is such a variety of purposes, natural as well as moral, in prosecution at the same time, that there many be nothing, perhaps, in the material world, that is simply and absolutely evil, nothing, but that what, under the direction of infinite wisdom, power and beneficence, is, in some or other of its consequences, productive of an over-balance of good.”

John Winthtrop debruçou-se, como era habitual na época, sobre o fenómeno, com uma perspectiva metafísica mas lançava, ao contrário do que era habitual, as primeiras bases da lógica que entendemos por sismologia numa tentativa de aproximação a um evento desta natureza do ponto de vista científico.

Se na América o abalo fez com que, entre outras coisas, um matemático vislumbrasse uma lógica marcante na catástrofe, numa Europa mais próxima as reacções também ficaram para a história e na história dos pensadores daquele tempo.

O impacto cultural foi inevitável e provocou algumas brechas no pensamento marcado pela visão supersticiosa. O fenómeno foi de tal ordem que até Goethe, que teria apenas seis anos, mais tarde recuperou o momento no seu auto-trabalho autobiográfico Dichtung und Wahrheit.

“Perhaps the Demon of Fear had never so speedily and powerfully diffused his terror over the earth.” 

Uma catástrofe natural sem precedentes na memória colectiva europeia despertava nos mais iluminados uma interessante viragem no seu pensamento outrora limitado por Deus. Para além dos locais, empenhados no pensamento da reconstrução, como o incontornável Marquês de Pombal ou outros, como Ribeiro Sanches, pela Europa elevava-se o debate sobre o que poderiam ser as causas e as conclusões deste fenómeno.

A reacção mais notável, neste âmbito, terá sido o magnífico poema de Voltaire mas não foi a única. Foi, aliás, numa espécie de resposta crítica ao poema de Voltaire que Jean Jacques Rosseau deixou indeléveis os diferentes caminhos que as suas ideias tomavam:

“You would have preferred that this earthquake had taken place deep in a desert rather than at Lisbon. Is it possible to doubt that they do not occur in deserts? But we do not speak of those because they cause no harm to the Gentlemen Who Live in Cities, the only people we take into consideration. These earthquakes scarcely harm even the animals and the savages who sparsely populate these remote regions and who do not fear falling roofs or collapsing houses. But what is the significance of such a privilege? Does this really mean that the order of the natural world should be changed to conform to our caprices, that nature must be subject to our laws, and that in order to prevent her from causing an earthquake in any particular place all we need do is build a city there?”

O terramoto de 1755 foi motivo de mais uma discórdia entre dois dos mais notáveis franceses da geração pré-revolução numa troca de perspectivas que evidenciava a insuficiência da explicação divina. Voltaire seguia a linha mais tradicional de apontar aos pecados lisboetas a causalidade do evento aos pecados lisboetas, chocando Rosseau, exigente de uma lógica mais realista.

Did fallen Lisbon deeper drink of vice

Than London, Paris, or sunlit Madrid?

Também Kant, um dos nomes clássicos da filosofia moderna, bastante mais novo que os franceses e ainda desconhecido na altura, se inspirou na desgraça para pelo menos 3 textos baseados em ensaios sobre sismos publicados no Konigsberg. Entre os quais um pequeno panfleto esclarecedor:

“The first observation to be immediately made is that the ground above which we live has to be hollow and that the vaults that form it are linked together, even beneath the sea. (…) For example, Lisbon and Iceland, which are distanced more than four hundred and a half German miles, suffered an earthquake on the same day. (…) the ruins of Lisbon should remind us that no building should be erected along the Tagus, as the river points in the direction that, naturally, the earthquakes will follow in this country”

Kant aproximava-se assim da lógica de Rosseau, procurando encontrar explicações tendencialmente universais (potencialmente científicas) para o sucedido, revelando uma mudança gradual do pensamento para uma perspectiva que procura uma lógica e não atribui simplesmente um significado supersticioso, e que se configura com uma das principais e mais positivas réplicas do sismo – como reforça a filósofa Susan Neiman no livro de 2002 Evil in Modern Thought: An Alternative History of Philosophy.

Como sintetizou o jesuíta Gabriel Malagrida, o sentimento generalizado era de que “Nem o Diabo inventaria uma maneira mais certa de nos levar à perdição.”, quer para pensadores que viam nisso um fenómeno de estudo, quer para os locais arcados perante o peso da tragédia.

Um abalo no pensamento nacional

Foi de resto nesse outro lado do espectro que se verificou o outro verdadeiro abalo no pensamento colectivo, neste caso, no que toca ao sentimento de identidade nacional.

Embora poucas vezes o possamos conceptualizar ou sequer consciencializar, nós, portugueses, somos um povo tradicionalmente triste. Os dados da World Database of Happiness que nos atribuem um 5.8 numa escala até 10 provam isso em parte. Espanha, assumindo para a comparação a preponderância geográfica, regista 7.0, e o Brasil, se quisermos pegar na questão da língua, 6.9. E a subjectividade do números estatísticos é corroborada por dois séculos de história e literatura. Desde o apelido de Povo Suicida dado pelo pensador espanhol do Miguel Unamuno a uma história marcada de poetas e escritores predominantemente melancólicos e, mesmo, tristes são vários os testemunhos deste carácter.

E ainda que seja sempre insuficiente atribuir uma causa só para esta tendência, ainda é mais errado que percamos a noção e o rasto de todas as possíveis raízes para o nacional-pessimismo. É para esse peso histórico e impacto cultural que Susan Neiman alerta no seu livro quando compara o impacto do terramoto a acontecimentos posteriores que recordamos, ainda assim, com testemunhos mais vividos como Auschwitz. Uma ideia que já tinha sido anunciada em 1966 por Theodor Adorno.

Portugal foi, no dia de Todos os Santos, epicentro de um sismo violento ao ponto de desgastar o optimismo filosófico, mas mais do que estabelecer relação directa entre esse desgaste e o do ânimo do carácter nacional, interessa perceber o porquê dessa possível influência, enquadrando-a nos dois séculos que lhe procederam. Desse exercício resulta uma interessante e sugestivo dado sobre a história: nos últimos 258 anos (até 2013), Portugal teve, em média, um episódio histórico traumático a cada 12 anos e meio. Se os dados históricos não nos permitem marcar um início da tendência, a noção de consciência colectiva e a forma como grande parte da informação sobre este acontecimento se foi afastando da esfera do conhecimento pode dar pista para um esquecimento subconsciente sob um manto pouco racional de uma tragédia tão marcante.

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  • João Gabriel Ribeiro

    O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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