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Esta semana, os robôs do Facebook eliminaram uma página de humor totalmente legítima. De repente, quatro anos de trabalho de um grupo de três pessoas e mais de 50 mil seguidores tinham ido pelo “cano abaixo”. É certo que o Jovem Conservador de Direita conseguiu recuperar a sua página de Facebook, mas este incidente deve ser um convite à reflexão sobre os perigos de uma internet gerida por empresas, em monopólios cada vez mais poderosos, e de uma inteligência artificial por vezes demasiado estúpida.
A (des)centralização da internet
Quando surgiu no final do século XX, a internet era descentralizada, isto é, pertencia às pessoas e não era determinada por cinco ou seis grandes empresas. A centralização da internet em tecnológicas como a Google ou o Facebook permitiu tornar este meio mais acessível, caso contrário só geeks conseguiriam usá-la. As empresas conquistaram o espaço virtual público criando interfaces simples que qualquer pessoa consegue compreender como funciona e ferramentas que possibilitam a qualquer um pesquisar informação ou contactar alguém.
Na internet de hoje, a Google, o Facebook e outras empresas cumprem o papel de intermediários tendo como objectivo lucrar, o que por vezes levanta dúvidas sobre a sua adequação a esse papel. Se por um lado é difícil imaginar a internet, com as múltiplas funcionalidades que lhe reconhecemos hoje, sem estas plataformas centrais, por outro, os avanços tecnológicos desvendam novas formas de organização que podem responder a este problema.
Apesar de desenvolvidos por engenheiros e especialistas que pensam a usabilidade ao pormenor, os serviços da Google e do Facebook não são propriamente essenciais e podem ser substituídos por relações mais directas, graças a tecnologias de partilha, como os torrents ou o blockchain. O blockchain permite que as aplicações não tenham de ser geridas por uma entidade central, uma vez que as respectivas bases de dados estão repartidas por todos os utilizadores, promovendo a transparência nos processos e regras. É o blockchain que dá vida, por exemplo, às criptomoedas, como o Bitcoin ou o Ethereum.
Uma rede social baseada em blockchain ou noutra tecnologia descentralizada estaria nas mãos de todos os seus utilizadores, que poderiam definir as suas regras mas esta não é a única opção. Um bom exemplo é o Mastodon, uma plataforma, semelhante ao Twitter, de código aberto e descentralizada que funciona em modelo federativo, isto é, em que qualquer pessoa pode criar “o seu próprio Twitter”. Neste caso, a moderação continua a cargo de uma única entidade – o administrador da instância –, mas, além de ser uma relação mais próxima, as redes mantém-se com dimensões humanamente controláveis fruto da sua especificidade. Há, por exemplo, instâncias para quem fala português (261 membros) ou para quem quiser saber mais sobre Ecologia Digital (300 membros).

O único poder que temos no Facebook é a decisão de usá-lo ou não, e a tendência é a primeira opção. O Facebook é um caminho fácil, quer para utilizadores – que para começarem a utilizar o serviço só têm de se inscrever (“chave-na-mão”) –, quer para criadores de conteúdo – que através dos amigos, dos grupos e das comunidades já existentes podem começar a partilhar e a criar uma audiência.
São mais de dois mil milhões de utilizadores activos no Facebook, isto sem contarmos com as outras plataformas que são geridas pela mesma empresa, como o Instagram ou o WhatsApp. Os respectivos dados pertencem ao Facebook. Os seguidores que acumulamos numa página são do Facebook e uma evidência disso é que não podemos exportar essa lista de contactos sequer. A distribuição de todo o conteúdo que partilhamos está dependente dos algoritmos que o Facebook desenvolve e aquilo que podemos ou não publicar depende também das regras que o Facebook define.
O real perigo da inteligência artificial
Aqui entramos no segundo ponto deste artigo: o da inteligência artificial. Dois mil milhões de utilizadores não são humanamente possíveis de serem geridos, pelo que a tecnológica teve de desenvolver mecanismos automatizados que recebem as denúncias dos utilizadores sobre conteúdo impróprio e processam-nas. Terá sido isso a causa da remoção do Jovem Conservador de Direita. Os gestores da página ainda puderam recorrer da decisão da primeira eliminação, mas o pedido foi chumbado e a página definitivamente eliminada.
Em situações normais – porque o Facebook não dispõe de um serviço de apoio humanizado a não ser que sejamos um grande anunciante –, a história teria ficado por aqui, mas o grupo humorístico terá conseguido um contacto dentro do Facebook. “Uma pessoa que trabalha no Facebook, além-fronteiras, decidiu tratar deste assunto a título pessoal e fez com que o final não fosse final. Sem as vossas denúncias, que utilizou para argumentar sobre o caso, não o teria conseguido”, lê-se numa publicação feita na página esta sexta-feira, que deverá ser a última naquela página. “E explicar recursos estilísticos a robôs é mesmo muito difícil.”

Um dos principais perigos da inteligência artificial não é ela vir a destruir a humanidade ou roubar empregos aborrecidos que hoje escravizam alguns de nós. É ser demasiado literal e não compreender algumas dimensões humanas, como o humor, ou não ter conhecimento factual suficiente para tomar determinadas decisões. E, assim, errar. E num Facebook, do qual alguns negócios dependem, o facto de ser um sistema regulado mais pela inteligência artificial do que por entidade reguladora (como as telecomunicações são reguladas pela Anacom ou a comunicação social pela ERC), onde os direitos dos utilizadores (se é que existem) não estão salvaguardados, pode ser bastante perigoso.
Criar e controlar o conteúdo
Sérgio Duarte, Frederico Saragoça e Bruno Henriques, os criativos por detrás do Jovem Conservador de Direita, dizem que vão seguir o seu trabalho fora do Facebook e usar a plataforma apenas para partilhar links para esses conteúdos. Dessa forma, deixam de correr o risco de ver a sua página ser novamente eliminada. Esta atitude é positiva e mais criadores de conteúdos deveriam olhar para ela como uma lição pessoal.
Já vimos youtubers indignados com algumas das regras que o YouTube, mas sentem-se frustados por não conseguirem fazer nada. Tal como no Facebook, não têm o apoio humano da equipa do YouTube; dificilmente conseguem influenciar a empresa a rever decisões ou mudar regras que não consideram justas. E sabem que têm no YouTube todo o seu conteúdo; se é verdade que podem exportá-lo e alojá-lo noutro sítio, não conseguem fazer o mesmo com a sua base de subscritores – esta pertence ao YouTube. Conscientes do valor instantâneo que o seu sucesso pode ter, alguns youtubers já estão a pensar em outras formas de criar comunidades, recorrendo a sites ou newsletters que eles controlam.
Seja o Mastodon, outra plataforma descentralizada ou um blogue, é cada vez mais importante termos controlo dos canais online onde partilhamos os nossos conteúdos e onde investimos o nosso tempo. Uma página de Facebook, um perfil de Twitter ou um canal de YouTube pode ajudar-nos a criar uma audiência, mas se todo o nosso trabalho (ou negócio) dependente dessas plataformas, podemos ficar desamparados quando essas plataformas, por algum motivo, desaparecerem. O e-mail e o RSS são dois exemplos de alternativas clássicas e descentralizadas para distribuir e receber conteúdo online.
A internet é o meio mais livre e aberto que alguma vez tivemos para partilhar e comunicar, mas, enquanto utilizadores e criadores, temos de ser mais ágeis e proactivos do que as corporações. Até porque, no fundo, no fundo, somos nós que determinamos o seu sucesso.