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A rasgar a monotonia de uma tarde de trabalho e de um mundo pleno de desgraças, nada como a assistir em directo ao lançamento inédito do mais potente foguetão no activo. A história já cativava só pelo seu aparato, mas para a euforia se completar faltava um elemento: um Tesla Roadster a bordo… só porque sim. Ou só porque Musk.
Foi no dia 6 de Fevereiro que a SpaceX marcou de modo indelével o seu nome na história – junto com o do seu fundador, Elon Musk. Mas que dirá a história deste momento a que o presente reagiu com jubilo? Chegaram a ser mais de 2,3 milhões de pessoas a assistir em simultâneo àquele que foi, sem dúvida, um grande feito para o Homem, mas cujas proezas para a Humanidade ainda estão por provar.
Uma proeza equiparável a levar o Homem à Lua
Podemos afirmar que a proeza de Musk é equiparável às missões Apollo, que levaram o Homem até à Lua, mas os seus contornos revelam a mudança do paradigma desde então. Não fosse a SpaceX a primeira empresa a voar com sucesso para o Espaço. Ou não fosse o Falcon Heavy o primeiro foguetão parcialmente reutilizável, que, à imagem dos aviões pode descolar e aterrar, em cenários perfeitos, vezes sem fim.

Os 27 motores que conferem potência ao gigante de 70 metros de altura, entraram em ignição por volta das 20h45 (hora de Lisboa) e, depois do grande momento, houve apenas perda a registar – o propulsor central que se perdeu no Oceano. Foi em tudo o resto uma missão bem sucedida, feita com três momentos de aceleração, dois dos quais já fora da zona da atmosfera terrestre, que deixarão a carga a bordo do foguetão – não nos esqueçamos do brilhante Tesla – algures em órbita no Sistema Solar. As primeiras previsões apontavam para Marte mas o sucesso surpreendente da missão parece estar a conduzir o veículo eléctrico até perto da cintura de asteróides.
Ohh my god @ChrisG_NSF & @NASASpaceflight! Remote number one from Falcon Heavy! pic.twitter.com/aj4ly8Cr5r
— Brady Kenniston (@TheFavoritist) February 6, 2018
Falcon Heavy side cores have landed at SpaceX’s Landing Zones 1 and 2. pic.twitter.com/oMBqizqnpI
— SpaceX (@SpaceX) February 6, 2018
Third burn successful. Exceeded Mars orbit and kept going to the Asteroid Belt. pic.twitter.com/bKhRN73WHF
— Elon Musk (@elonmusk) February 7, 2018
Democratizar o Espaço? Qual o proveito para a Humanidade?
Aqui chegados é impossível menosprezar o feito de Musk que, apesar dos sucessivos atrasos, cumpriu mais uma das suas megalómanas promessas. Todavia, é imperativo questionar o impacto ou as diferenças desta nova corrida ao Espaço. Se antes falávamos de um feito inédito, apenas ao alcance da força unida de várias nações, hoje o espaço parece estar à distância de mais um empreendedor de Sillicon Valley – e se esta questão parece menor, basta pensarmos no que rege um e outro tipo de instituição e, de passagem, como crescem as empresas nesse vale encantado.
Currently over Australia 🇦🇺 pic.twitter.com/HAya3E6OEJ
— Elon Musk (@elonmusk) February 6, 2018
O soundbyte parece nobre – “democratizar o Espaço” – mas, para já, ainda nos diz mais sobre o conceito de Democracia na Terra do que sobre o proveito da Humanidade na exploração espacial liberalizada. Sejamos francos: explorar o Espaço é importante e disso não há dúvidas, fazê-lo a baixo custo também é um contributo simpático mas… qual será o seu aspecto verdadeiramente democrático?
Um Espaço de marketing e de influência
A estratégia de Musk pode baixar o custo das missões espaciais até 100 vezes, mas será essa uma necessidade no mundo em que há quem não consiga pagar o custo de água, alimentação ou outros bens essenciais? É certo que esse não é um problema seu; contudo, não será a consciência o que distingue o bem para o Homem do bem para a Humanidade? Não terá a capacidade de mobilização (ou deva dizer-se antes marketing?) dos empreendedores à volta dos seus sonhos, iludindo a nossa escala de ambições enquanto espécie? Não é ecológico, não é económico, não é humanista. É sobretudo e, por enquanto, fixe, porque a sua utilidade concreta ainda todos desconhecemos e, recordando o Musk de há uns anos a falar de cargueiros espaciais… não se augura grande futuro.
É que se sempre nos habituámos a encarar o mistério do Espaço como pretexto para a aventura científicas, poucas são as palavras de Musk nesse sentido que parece apenas preocupado em aproveitar o Espaço vazio para expandir a sua influência. Não, colonizar outros planetas não se tornou uma possibilidade porque ainda é impossível viver lá — não era só de transporte que necessitávamos. Assim, onde se aplica a tal democracia?
As próximas missões do Falcon 9/Falcon Heavy podem ser a resposta que precisamos para perceber para onde se dirigirá o potente foguetão. Ainda este ano deverá lançar para orbita satélites de comunicações da Arábia Saudita, do exército norte-americano e um teste colaborativo com a Sociedade Planetária.
E onde entra o Tesla Roadster?
O Tesla Roadster é quase um elemento gráfico neste gigante aparato e, sem dúvida, o ex-libris desta estratégia de marketing. Musk já nos habituou às arrojadas jogadas de mercado e aproveitou o momento para elevar todo o seu universo empresarial montando um Tesla no Falcon Heavy da SpaceX. O empresário sul-africano já tinha dito anteriormente que lançaria a coisa mais tola de que se lembrasse, mas não foi assim que o fez – pelo menos a analisar pelo nível de detalhe e mise en scene aplicados a este adereço.

Um luzente Tesla Roadster vermelho com um passageiro fictício, um painel com a escritura “DON’T PANIC” e banda sonora de David Bowie, numa emulação quase perfeita dos sonhos de ficção científica de gerações passadas, fazem-nos esquecer as dúvidas sobre a inutilidade do feito, uma vez que, calcula-se que o futuro deste Tesla seja… desintegrar-se no Espaço.
O Espaço não se tornou democrático, liberalizou-se
A “utilidade” existe mas não é lá muito democrática. Musk, que ainda na semana passada lucrou perto de 20 milhões de dólares com um lança chamas, fez uma espécie de promoção cruzada entre as suas empresas, aproveitando a surpresa provocada por um momento sem sentido.
Não se trata de moralismo barato, nem de dizer que com o mesmo dinheiro Musk poderia salvar crianças com fome ou fazer algo bem mais louvável. O progresso a nível de engenharia é meritório e louvável e pode mesmo abrir novas rotas para o Espaço para a Humanidade, as restantes conquistas e sucessos (os concretos e observáveis) é que não são tão transversais e a euforia acrítica sempre má conselheira.
O Espaço não se tornou democrático, liberalizou-se. Uma empresa conseguiu fazer o primeiro voo espacial, é certo, mas nem se sabe ao certo por quem esta gigante operação foi financiada, pelo que é difícil perceber ao certo quais as próximas aplicações destas tecnologia. Numa altura em que conceitos como a vigilância em massa, o reconhecimento de voz ou o controlo de dados emergem como principais eixos de preocupação, seria interessante sublinhar com igual entusiasmo que, mais do que tornar acessível a qualquer um viajar para o Espaço, ficou muito mais simples e barato pôr satélites em órbita, uma realidade que com certeza terá muito mais impacto nas nossas vidas do que a possibilidade de abertura de um estância de ski em Marte.
