O artigo da Wired sobre os últimos dois anos de Facebook, publicado no início de Março, dá-nos uma perspectiva de como a empresa dona de uma rede social com mais de 2 mil milhões de utilizadores funciona. Alguma desorientação resultante da inocência dos seus líderes, alguma pressão de investidores e funcionalidades lançadas consoante as suas preocupações.
O caso dos Cambridge Analytica Files, que despoletou em meados de Março, foi apenas uma das demonstrações de fragilidade do Facebook. Foi, talvez, a mais grave, mas não a única: notícias falsas, adição do News Feed, a violência no Facebook Live, cyberbullying, segmentação abusiva de anúncios, interferência em eleições… é a lista de polémicas que Josh Constine faz num dos seus últimos artigos. “Durante o tempo todo, o Facebook acreditava que os piores cenários nunca iriam acontecer, era ingénuo quanto à sua existência ou calculava que os benefícios e crescimento superavam os riscos. E quando foi finalmente confrontado, o Facebook muitas vezes deixou o problema arrastar-se em vez de admitir a sua extensão”, observa o jornalista do TechCrunch.
“Talvez alguém morra num ataque terrorista organizado com as nossas ferramentas”
O artigo de Josh Constrine vem a propósito de uma nova polémica que envolveu o Facebook na última semana de Março. Um memorando interno de 2016 partilhado pelo BuzzFeed revela a posição de um executivo da empresa, Andrew “Boz” Bosworth, quanto às tácticas de crescimento da empresa, num tom aparentemente frio e insensível. “Falamos sobre o bom e o mau do nosso trabalho muitas vezes. Quero agora falar sobre a parte feia”, começava a dizer. “Nós conectamos pessoas. Pode ser bom se fizerem disso algo positivo. Talvez alguém encontre o amor. Talvez até salve a vida de alguém à beira do precipício. Por isso, conectamos mais pessoas. Pode ser mau se fizerem disso algo negativo. Talvez custe a vida ao expor alguém a bullies. Talvez alguém morra num ataque terrorista organizado com as nossas ferramentas. E mesmo assim conectamos pessoas.”
Boz prosseguia: “A verdade feia é que nós acreditamos em conectar as pessoas de tal forma que qualquer coisa que nos permita conectar mais pessoas mais rápido é, de facto, bom.” E acrescentava logo a seguir: “É por isso que todo o trabalho que fazemos em crescimento é justificado. Todas as práticas questionáveis de importação de contactos. Toda a linguagem subtil que ajuda as pessoas a continuarem pesquisáveis pelos amigos. Todo o trabalho que fazemos para gerar mais comunicação. Todo o trabalho que provavelmente vamos ter de fazer na China um dia. Tudo”, lê-se na nota do actual vice-presidente de AR/VR do Facebook, que foi partilhada num dos grupos internos da empresa.
Os executivos do Facebook dizem a verdade?
A divulgação pública pelo BuzzFeed do memorando interno do Facebook obrigou a uma resposta rápida de Mark Zuckerberg. O director executivo da tecnológica reagiu prontamente à notícia do BuzzFeed dizendo que Boz é um “líder talentoso que diz muitas coisas provocativas“ e que esta em particular é “uma da quais muitas pessoas no Facebook, eu incluído, discordam profundamente”, acrescentando que a empresa “nunca acreditou que os fins justifiquem os meios”.
Também o próprio Boz reagiu ao artigo do BuzzFeed. Através do Twitter, disse que não concorda com o memorando que publicou em 2016 nem concordou com ele na altura, apesar de o ter escrito. Uma declaração algo estranha que nos faz questionar a integridade dos executivos do Facebook – será que acreditam mesmo no que dizem publicamente? No mesmo tweet, Boz explicou que a sua intenção era apenas incentivar, junto dos funcionários, a discussão em torno da estratégia de crescimento da empresa; já numa nota obtida pelo The Verge, explica que apagou entretanto o memorando de 2016 porque “essa conversa já passou”, acrescentando que não será ele a “trazê-la de volta por receio que seja mal interpretada por uma população mais ampla que não tenha o contexto completo sobre quem somos e como trabalhamos”.

O BuzzFeed descreve, através da perspectiva de ex-funcionários do Facebook, Andrew “Boz” Bosworth como pouco diplomático, alguém que não mede as palavras e que, apesar de falar na voz da maioria de quem trabalha no Facebook, polariza opiniões. Os antigos “facebookers” que aceitaram falar com o BuzzFeed dizem ainda que a nota agora tornada pública é “o Boz a ser Boz” e recordam que foi bastante controversa na altura em que foi partilhada internamente.
Horror dentro de portas no Facebook
Já outras vozes ligadas ao Facebook têm uma perspectiva diferente, conforme conta o TechCrunch. Antonio García Martínez, ex-funcionário do Facebook e que actualmente colabora com a Wired, partilhou no Twitter casos como este, em que uma discussão interna chega à imprensa e em que “alguns facebookers colocam os seus rancores pessoais e pontos de vista acima dos interesses da empresa”, proporcionando um clima de “horror” entre a equipa do Facebook, o que pode “quebrar a moral interna e a unidade em torno do propósito, que levaram a empresa até onde está hoje”.
The fact that some Facebooker would place their personal grudge and views above the interests of the company fills anyone on the home team with horror (in the same way that the current administration colluding with foreigners to secure a domestic victory does Americans).
— Antonio García Martínez (@antoniogm) March 30, 2018
É esta, segundo Antonio, a maior ameaça ao Facebook, não a potencial regulamentação, nem a perda de utilizadores. Uma posição que é defendida por Adam Mosseri, vice-presidente do News Feed, que acrescentou que este tipo de leaks “criam incentivos claros para se ser menos transparente internamente e fazem abrandar-nos”.
I’m really worried about this. I worry it’ll make it much more difficult to step up to the challenges we face.
— Adam Mosseri (@mosseri) March 30, 2018
Semelhante análise faz, no TechCrunch, Josh Constine, que ao longo dos últimos oito anos tem acompanhado de perto o Facebook, questionando mesmo se o Facebook não terá de abrandar para sobreviver. Josh explica que os utilizadores já viram o Facebook errar várias vezes ao longo do tempo, mas que mesmo assim “não deixam de ficar colados ao feed” e que, “mesmo aqueles que não fazem scroll, dependem dele como um utilitário fundamental para o envio de mensagens e para login noutros sites”. E acrescenta: “Privacidade e transparência são demasiado abstratas para a maioria das pessoas.” O jornalista do TechCrunch fundamenta o seu ponto com o caso dos Cambridge Analytica Files que, apesar de ter originado uma quebra da app do Facebook na App Store, esta subiu no top na semana imediatamente a seguir ao escândalo.
Data shows #DeleteFacebook peaked way lower than #DeleteUber because people could switch to Lyft. Here's why regulation of Facebook needs to prioritize competition: https://t.co/obBWHbEBuP pic.twitter.com/lrnkv59b3L
— Josh Constine (@JoshConstine) March 25, 2018
Uma questão de coesão interna
No fundo, toda esta história do memorando leakado de Boz pode ser resumido a uma questão de cultura interna, conforme conclui Josh Constine. A equipa do Facebook precisa de estar coesa e unida em torno de um propósito que não seja negativo para o mundo. Caso não sintam que estão a desenvolver uma boa ferramenta, deixarão de querer trabalhar no Facebook ou irão trabalhar sem tanto afinco.
“Como parar o ímpeto descendente de moral será um dos maiores testes à liderança do Facebook. Isto não é um bug que pode ser corrigido. Não é como reverter uma actualização de uma funcionalidade. E um pedido de desculpas não será suficiente”, escreve Josh, referindo que é importante manter o talento a bordo e que o núcleo executivo do Facebook precisa de mostrar fraqueza e responsabilidade sem alimentar mais imprudências.
I think it starts with owning our mistakes and being very clear about what we’re doing now. For much of the company November 2016 was their first negative cycle, so it’s also good to share old stories. And then you have to deliver, you have to make real progress on the issues.
— Adam Mosseri (@mosseri) March 30, 2018