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Mark Zuckerberg, CEO do Facebook, começou 2018 a falar em “tempo bem passado”, prometendo ajustar os algoritmos do News Feed para mostrar melhor conteúdo aos utilizadores por forma a sentirem o seu investimento de tempo no Facebook melhor aproveitado. Meses depois, ouvimos a Google e depois a Apple a falarem de “bem estar digital” e de “tempo de ecrã”, fazendo-nos subentender a existência de uma tendência tecnológica para este ano.
Apple e Google querem-nos a usar menos o telemóvel?
Na I/O, a conferência da Google para programadores, que decorreu no início de Maio, a tecnológica apresentou ferramentas que permitirão aos utilizadores do sistema operativo Android gerir o tempo que passam agarrados aos smartphones e em determinadas aplicações. Na versão Android P, que sairá depois do Verão, vamos poder ver o tempo que passámos a utilizar o nosso dispositivo através de gráfico que nos mostrará esse total dividido pelas diferentes apps. Poderemos ainda ver quantas notificações recebemos e quantas vezes desbloqueámos o smartphone, bem como estabelecer limites de tempo para cada aplicação, findo o qual a sua utilização é bloqueada.
Já no WWDC, a conferência homóloga da Apple, que se realizou no arranque deste mês, foram anunciadas novidades semelhantes para o iOS. A funcionalidade Screen Time também vai permitir aos utilizadores de iPhone e iPad visualizar graficamente o tempo que passaram com estes dispositivos e estabelecer limites de utilização para apps ou categorias de apps (por exemplo, poderemos só querer despender um X tempo por dia nas redes sociais). Para além disso, o iOS 12 vai permitir-nos ainda estabelecer períodos de “Downtime”, durante os quais só determinadas aplicações – as que escolheres como “essenciais” – poderão ser utilizadas (tudo o resto estará bloqueado).
Quer a Google, quer a Apple revelaram ainda novidades quanto à opção “Do Not Disturb” já existente nos respectivos sistemas operativos. Com o Android P, por exemplo, este modo poderá ser activado automaticamente sempre que pousas o telemóvel numa mesa com o ecrã virado para baixo. Já no iOS 12, o “Do Not Disturb” vai permitir-te ter um sono descansado, escondendo todas as notificações durante as horas em que costumas estar a dormir. A Apple anunciou ainda novas opções para gerir as notificações no dia-a-dia, nomeadamente a possibilidade de desligá-las para determinada app directamente no lock screen – algo que o Android tem desde a versão 7.0 Nougat.
A Google desenhou uma página web só sobre a questão do “bem estar digital”, na qual apresenta as diferentes soluções para os seus vários serviços. Destaca o Google Assistant no Google Home como uma forma de fazer chamadas ou ouvir música sem tocar no smartphone, a inteligência artificial do Google Photos capaz de editar as nossas fotos e de limpar o ruído das nossas galerias, ou a “Priority Inbox” do Gmail que de forma inteligente procura reunir apenas os e-mails mais importantes.
“Tempo bem passado” no YouTube e Instagram
Na app do YouTube, quer para Android como iOS, há uma nova opção intitulada “Take a break” que permite estabelecer um limite máximo de uso da plataforma de vídeos, após o qual recebemos uma notificação a sugerir um intervalo. O YouTube tem nos dispositivos móveis outra opção que permite combinar todas as notificações num digest – desse modo, em vez de receberes uma notificação sempre que algum dos teus youtubers preferidos publica um vídeo ou alguém comenta num conteúdo teu, recebes tudo junto a uma hora do dia que definires.
O Instagram, do Facebook, está a testar um aviso no meio do feed da aplicação que indica aos utilizadores quando já viram todas as publicações das últimas 48 horas – “You’re All Caught Up. You’ve seen all new post from the past 48 hours”, lê-se na notificação que o TechCrunch apanhou e cujo teste foi confirmado por fonte do Instagram.
A app está também a experimentar com uma nova secção que mostra aos utilizadores estatísticas referentes ao seu uso da rede social. Kevin Systrom, director executivo do Instagram, comentou no Twitter o artigo do TechCrunch, dizendo que “estamos a construir ferramentas para a ajudar a comunidade a saber mais sobre o tempo que passam no Instagram – qualquer que seja esse tempo deve ser positivo e intencional”.
We're building tools that will help the IG community know more about the time they spend on Instagram – any time should be positive and intentional.
— Kevin S. (@kevin) May 16, 2018
A ironia da questão e quem é Tristan Harris
Esta questão do “tempo bem passado”, do “bem estar digital” e do “tempo de ecrã” não deixa de ser irónico por parte das tecnológicas – Facebook, Google, Apple… – que ao longo dos anos nos prenderem ou deixaram os outros prenderem-nos aos smartphones. Através, por exemplo, de interfaces cuidadosamente desenhadas para nos fazer passar mais tempo nelas, de lojas carregadas de apps para tudo e mais alguma coisa (incluindo para nada) ou da promoção massiva do smartphone enquanto objecto utilitário do dia-a-dia, não considerando qualquer efeito psicológico ou social que pudesse daí decorrer, tornámos-nos dependentes da tecnologia a um ponto tal que, muitas vezes, nem nos apercebemos disso. Resultado: stress e ansiedade, desconcentração e atenção mal empregue, insónias, perturbações emocionais e depressões…
A revista Wired escreve que a “agora a Apple – muito à semelhança de Silicon Valley – quer curar a ferida que causou”, justificando esta afirmação com estes dois acutilantes parágrafos:
“Steve Jobs mudou o mundo com o iPhone, a peça brilhante de vidro e alumínio que redefiniu a categoria de telemóvel no dia em que foi posto à venda em 2007. Mas só um ano depois, quando Jobs apresentou a App Store, a Apple faria a sua contribuição mais pesada. A App Store inventou um novo mundo, onde motoristas, encontros e entregas podem acontecer com poucos toques; mas também onde a nossa atenção pode ser destruída, a nossa democracia abalada e a nossa ansiedade aumentada. Dez anos depois, à medida que nos debatemos cada vez com o domínio mental da tecnologia, é difícil não imaginar Steve Jobs como um jovem Dr. Frankenstein; a App Store, a sua monstruosa criação.”
Em Silicon Valley, o “bem estar digital” não é um assunto recente. Tristan Harris é um antigo gestor de produto na Google que tem vindo a criticar as plataformas aditivas que as grandes empresas de tecnologia criaram. É considerado o pai do movimento “tempo bem passado” e criou uma organização sem fins lucrativos intitulada Center for Humane Technology, que defende uma abordagem mais humana à tecnologia, pedindo às tecnológicas melhores ferramentas, aos Governos (melhor) regulamentação e ao público em geral atenção para este problema. A entrevista à Wired pode ser uma boa forma de conhecer melhor o perfil de Tristan, mas há também uma TED Talk de 17 minutos que este deu em Abril do ano passado e um artigo publicado no Shifter sobre o movimento que criou.
As diferenças entre as propostas da Apple e da Google
81% dos iPhones e iPads estão a usar a versão mais recente do sistema operativo – iOS 11. A Apple sempre foi boa a distribuir actualizações e vai continuar a sê-lo enquanto continuar a controlar tanto o software como o hardware. No mundo da Google, o cenário é bem diferente: só uma pequeníssima percentagem dos equipamentos Android correm a versão mais recente – o Oreo – e o cenário não deverá ser muito diferente com o lançamento do Android P. Quer isso dizer que as ferramentas de gestão de tempo que serão lançadas com o iOS 12 depois do Verão chegarão a muitas mais pessoas que as homólogas da Google, mas há uma vantagem principal que a tecnológica de Mountain View apresenta relativamente à de Cupertino: a abertura do ecossistema.
Os esforços da Google com o “bem estar digital” não se esgotam no seu sistema operativo: há toda uma comunidade de programadores a tirar partido da abertura do Android para desenvolverem eles próprios as suas ferramentas. Aplicações como o Siempo, o Offtime ou o Flipd procuram responder ao mesmo problema de passarmos demasiado tempo no ecrã, mas não há um “remédio santo” porque as nossas relações pessoais com a tecnologia são diferentes – alguns procuram smartphones seguros para as crianças, outras querem aproveitar o mundo online no seu tempo livre mas não querem interrupções durante o estudo ou trabalho; outros tencionam quebrar a adição que sentem com o scroll contínuo em feeds e stories.
Contudo, apesar de algumas destas apps estarem disponíveis também para iOS, programadores sentem-se de mãos atadas com as limitações operacionais que o iOS lhes impõe, não deixando ter acesso a ferramentas como o bloqueio de determinadas aplicações ou a modificação do home screen, possíveis no Android.
Há assim quem defenda que, se a Apple está verdadeiramente preocupada com o tempo que as pessoas passam nos seus equipamentos, deveria deixar a comunidade de programadores explorar soluções também, disponibilizando APIs para tal. Por outro lado, como acima referido, é possível dizer-se que as mudanças implementadas pela tecnológica da maçã terão um alcance mais significativo nas primeiras fases do seu lançamento, a passo que na Google este movimento deve apenas atingir os early adopters que se preocupem em manter o seu equipamento na última versão de software.