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A entrevista foi feita a mais de 8 mil quilómetros de distância porque depressa percebemos que com o Gonçalo não dava de outra forma. Estava em West Bengal, na Índia, a trabalhar numa reportagem sobre situações de pobreza levadas ao extremo – a população de várias aldeias daquele estado indiano está a vender os rins para conseguir sobreviver. Como se a história não fosse intensa por si só, o Gonçalo foi expulso do local pelos traficantes que o viram como uma ameaça para o negócio quando apenas tentava reportar o caso.
Esta situação é o retrato perfeito daquilo que tem sido a sua carreira, não porque seja repleta de riscos e perigos, mas porque tem sido marcada pela sua coragem e vontade de arriscar.
Se víssemos o portefólio do Gonçalo nunca diríamos que tem 25 anos. Em 2014, acabou o curso em Jornalismo na Universidade Católica de Lisboa e consegui um estágio como jornalista de vídeo no Expresso. Terminado o estágio e sem qualquer tipo de perspectivas profissionais, arranjou coragem para seguir aquela que sempre foi a sua principal paixão e foi estudar Fotojornalismo para Barcelona durante um ano. Desde 2016 que tem estado a trabalhar como freelancer em países como Marrocos, Espanha, Portugal, China e Índia.
Já teve trabalhos publicados na TIME, no El País e El País Semanal, Euronews, 7K, Diari Ara, Equal Times, Le Temps e Open Society Foundations. A juntar a tudo isto, já teve um par de distinções internacionais em diferentes concursos e já viu as suas fotos expostas em Lisboa, Londres e Dresden. Ter a TIME no currículo foi o culminar do trabalho de três anos. “Já me aconteceram muitas coisas. Parti parti o pulso em dois sítios enquanto trabalhava, já fui ameaçado de morte, mascarei-me de trabalhador marroquino para a polícia espanhola me deixar fotografar. Às vezes as coisas não saem e fecham-se muitas portas. Mas estes são os momentos que te dão força para continuar a contar histórias.”

O nosso interesse em falar com o Gonçalo partiu obviamente do sucesso que já alcançou mas, mais que isso, esteve sempre relacionado com a forma como alcançou tudo o que já soma na sua carreira e história de vida. O “quê” é importante, mas é o “como” que torna o seu percurso admirável e um daqueles casos que inspira qualquer um, até naqueles dias mais melancólicos e sem perspectivas. Conversámos via e-mail. “Abananado” mas de volta à civilização e em segurança, o Gonçalo respondeu às nossas perguntas via telemóvel porque, no meio do caos em que se viu, ainda ficou sem computador.

Falámos da sua primeira grande viagem de trabalho a Melilha, um enclave espanhol em Marrocos e um dos pontos de entrada para os muitos migrantes e refugiados que procuram uma vida melhor na Europa. Foi lá que quis começar num altura em que os jornais e revistas estavam focados em Lesbos, Idomeni e Lampedusa.
“Quando não há atenção mediática é mais fácil haver abusos de poder, por isso achei que seria um bom ponto de partida para mim. Vivi lá durante 4 meses e trabalhei em diferentes projectos, relacionados com questões de direitos humanos e migrações. Fiz um trabalho sobre as portedoras, centenas mulheres marroquinas exploradas e tratadas como animais de carga, que levam contrabando de Espanha para Marrocos. Foi um tempo de crescimento incrível e de muita aprendizagem.”
Nos primeiros meses de 2017, decidiu fazer um apanhado sobre a descriminalização das drogas em Portugal. “Apercebi-me que os fotojornalistas que trabalharam este tema não tiveram o tempo necessário para fazer alguma coisa realmente boa e com profundidade. Não é culpa deles, mas sim da nossa imprensa que muitas vezes não tem os recursos nem os leitores para permitir trabalhos de investigação de vários meses.” Durante três meses submergiu-se nesse mundo e acabou o trabalho que foi publicado recentemente na TIME.





Em meados do ano passado foi para Shanghai, na China, onde durante dois meses se debruçou sobre a solidão e o amor na sociedade chinesa. “Mais que trabalhos completos, vejo-os como apontamentos de temas que quero continuar a fazer no futuro. Nessa altura da minha vida não pude passar muito tempo lá, já que o meu pai estava doente e não me sentia bem a passar tanto tempo longe de casa.”




Actualmente está há mais de quatro meses na Índia a trabalhar sobre o Tráfico de Órgãos, um dos trabalhos mais intensos que já fez. “Na Índia, os problemas renais são cada vez mais comuns, os especialistas estimam que sejam precisos 200 mil rins por ano, o que cria um mercado negro enorme, cujo combustível é a pobreza. Milhares de pessoas não têm outra opção que não seja vender um órgão. Está a ser muito intenso, mas é um trabalho fundamental, já que raramente estas vítimas têm oportunidade de expressar as suas opiniões e ter uma voz.”
Conversámos sobre a estabilidade (ou falta dela) de ser foto-jornalista freelancer. Gonçalo confessa que a questão financeira é complicada mas não ter de obedecer a ninguém e poder seguir e falar sobre os temas que lhe interessam verdadeiramente compensam muitas das fragilidades da profissão.
“O mais provável é que se os temas te motivam e te fazem questionar, vais interessar muitas outras pessoas. O mais desafiante é começar, porque ninguém te conhece e tu não conheces ninguém. Os meios tentam aproveitar-se de ti e tentam publicar os teus trabalhos sem te pagar. Mas à medida que o tempo vai passando, vai sendo mais fácil.”
Ganhar dinheiro é difícil e, como sempre nos ensinaram, o Gonçalo assina por baixo: há que trabalhar muito. A fotografia acaba por ser só 10% do trabalho. O resto é passado a investigar, a falar com as pessoas, a mandar muitos e-mails e a passar horas incontáveis ao computador. Ao computador e não só. É que o advento dos smartphones e do jornalista-cidadão tiveram obviamente impacto no trabalho dos fotojornalistas.

Para o Gonçalo, esse impacto não foi necessariamente negativo: “É incrível a fotografia ser algo muito mais democrático agora. Qualquer um pode ser fotógrafo, até com um telemóvel se podem fazer trabalhos maravilhosos. Isso faz com que tudo se torne mais competitivo, porque há cada vez mais gente a fotografar e cada vez mais gente que tem imenso talento. No fim, acabam por resistir aqueles que são mais determinados.”
“Não é por haver computadores baratos que os escritores ou jornalistas deixam de ter trabalho. O facto da imagem se ter democratizado permite-te ter vozes e perspectivas diferentes que não a do ocidental branco, homem e heterossexual (na qual eu me incluo) e que domina o discurso visual noticioso. Teres um fotógrafo do Uganda a contar as histórias do seu lugar dá-te uma visão mais íntima e inteligente, do que a de um fotógrafo que vá uma semana para lá e não compreenda o sítio nem as pessoas.”
Ressalva, ainda assim, desinvestimento dos jornais, especialmente em Portugal mas também noutros países europeus, em relação à fotografia de qualidade. “Às vezes basta mandar um redactor com um smartphone e está feito. Obviamente que assim é difícil fazer conteúdos de qualidade. Temos excelentes foto-jornalistas portugueses, mas muitas vezes não têm a oportunidade de fazer os trabalhos que gostariam.”
Perguntámos-lhe sobre o espaço que crê que a reportagem fotográfica pode ter no mundo e no jornalismo no seu papel social. “Pergunto-me muitas vezes isso a mim próprio. Que efeito é que estas reportagens vão ter nas vidas das pessoas que eu estou a fotografar?”, refere, acrescentando que acredita que a maior parte das vezes, fica tudo na mesma. “Muito raramente se consegue mudar o mundo através do jornalismo. Às vezes tenho crises a pensar nestas questões, mas temos de nos lembrar de qual é o nosso papel. Como jornalistas, estamos lá para contar a história, sem pessoas como nós a documentar, ninguém saberia que existem estas realidades.”
A maturidade do seu trabalho contrasta com a esperança de alguém que ainda agora começou e só quer contar histórias e que elas sejam conhecidas do maior número de pessoas possível: “Hoje em dia, é cada vez mais difícil que as pessoas se liguem às tuas fotografias. Podes esperar que as olhem durante dois ou três segundos no máximo, se for online. Há que pensar em novas formas de explicar os temas, em novas narrativas e formas de apresentar as imagens, para que o maior número de pessoas possível seja tocada pelo teu trabalho.”
Podes seguir o trabalho do Gonçalo na sua página pessoal ou através da sua conta de Instagram.