Gonçalo Preto: um jovem normal com um trabalho extraordinário

Gonçalo Preto: um jovem normal com um trabalho extraordinário

Aos 26 anos e com um corpo de trabalho considerável para a idade, Gonçalo é o resultado de um equilíbrio singular entre ambição e conforto, dedicação e desprendimento, rigor e diversão.

Como qualquer criança nos 90 e antes da invenção do iPad, o Gonçalo começou quando ainda nem sabia, nem queria saber, o que era pintar ou sequer a pintura, a rabiscar em folhas de caderno desde a lição nº 1 e 2, nos toalhetes dos restaurantes em jantares de família e, ao desafio, na companhia da mãe nas horas de espera por consultas médicas. Como poucos, foi levando os hobbies e a paixão pela vida, impulsionado pela aceitação e abertura dos pais e pelo fascínio da avó que noutros tempos tivera o sonho de ser pintora e agora vê no neto essa concretização.

Tal como crê, o trabalho do Gonçalo não é fruto de inspiração divina que se traduz num talento natural que conduza a sua mão pela tela em belíssimos movimentos, nem de demasiadas horas de sacrifício, até que as mãos ou os olhos sangrem. Aos 26 anos e com um corpo de trabalho considerável para a idade, é o resultado de um equilíbrio singular entre ambição e conforto, dedicação e desprendimento, rigor e diversão. Falando com o Gonçalo facilmente se percebe que para si a pintura tem regras mas que não são sagradas; vive da intuição mas tem de ser trabalhada.

No seu atelier vemos imediatamente telas — e os trabalhos de escultura do seu colega de espaço, Rui Gueifão — mas também vemos livros, tantos sobre pintura e pintores como sobre outros temas triviais. Naquela secretária pensam-se obras e vêem-se muitos jogos e resumos da NBA, como o próprio confessa, desmistificando o local e o seu epitáfio de pintor. O assunto é sério e as suas pinturas também o aparentam ser — opta por uma abordagem mais clássica da pintura, digamos, realista — mas com ele pode-se falar na boa.

O seu trabalho é explícito e os temas das pinturas não vão muito além do que existe no nosso imaginário, ainda assim cada obra carrega consigo uma carga narrativa impossível de retratar. Se ao classificarmos um pintor costumamos levar em consideração a originalidade que identificamos naquilo que não compreendemos, no caso do Gonçalo Preto não é bem assim. À primeira vista compreendemos tudo mas nem por isso as peças deixam de nos intrigar. A técnica e as nuances de luz — no fundo, o elemento chave de uma imagem aqui materializada em pigmento — são de uma intencionalidade e persistência notória, como se nos quisesse lembrar da quantidade de realidade que existe no mundo real. E sobretudo daquilo em que não reparamos na maioria das vezes.

Numa visita guiada às obras expostas no pequeno estúdio, Gonçalo conta-nos de cabeça aquilo que o motivou a fazer cada uma das peças. Na aleatoriedade do que compõe a sua inspiração sente-se uma certa tendência para questionar o normal, propondo leituras diferentes ou inéditas sobre objectos e situações do quotidiano. Não há (para já) uma obsessão figurativa nem retratos de demónios que lhe habitem o imaginário. O retratado parece banal e só a minúncia da pintura lhe confere valor extraordinário. Não questionamos simplesmente o que está retratado nas telas mas toda a história que o levou até ali. O que fez um jovem pintor dedicar-lhe visíveis horas de esforço. As respostas nem sempre são óbvias, nem acessíveis. As pinturas nem sempre se situam no mesmo ponto da história que pretendem contar.

“Por exemplo este desenho é o primeiro homem a quem se fez um transplante de cara.”

Quando lhe perguntamos directamente o que mais determina o seu imaginário, partilha connosco a dúvida geral a que só cada peça em concreto é capaz de responder. “Depende muito da escala, do que a própria peça pede”, diz-nos enquanto inicia a explicação do processo de decisão a que está sujeita uma peça, neste caso, uma exploração do tema do sonho proposta pela curadora Sara De Chiara para uma exposição colectiva na Boavista, que se cruzou com a sua leitura de “Réquiem” de António Tabucci, autor, professor italiano, responsável pela tradução de Pessoa que acabou por inspirar as suas peças.

“O livro é todo ele a vaguear por Lisboa, na primeira pessoa, durante um dia a vaguear pela cidade e a ter encontros imediatos com pessoas que não existem, incluindo o Fernando Pessoa. Então eu tentei pôr-me nesse papel e criei duas imagens — uma delas um trilho à noite, outra a entrada de um edifício — super escuras na qual a luz entra mas se perde na penumbra; então quase conseguias imaginar alguma coisa ou alguém que vinha de lá. Como os trabalhos são tão grandes (2 metros de altura) têm essa primeira leitura. Ao pores-te à frente da imagem, o reflexo quase que te transportava para o outro lado.”

São histórias como esta que se escondem em quadros como os que conhecemos, nem sempre vindos a público. O que levanta outra questão, sobre a proliferação das imagens e como se encaixam — sem mais explicações — trabalhos de horas entre selfies instantâneas em feeds como o do Instagram. “Hoje em dia toda a pintura parece boa pintura; tudo é bem fotografado e parece boa pintura. (…) Por isso muita gente já nem se desloca os sítios para ver a pintura o que acaba por ser triste.”

Quanto à realidade local, o Gonçalo conserva a esperança que se funda na dedicação dos seus pares, ainda que admita que não há muita gente de fora do circuito com abertura e interesse. No que toca à sua subsistência e à forma como ser pintor lhe permite ser só pintor, o jovem não descarta ter tido alguma sorte. Actualmente é representado pela Galeria Madragoa o que faz com que grande parte das suas obras sejam vendidas para o estrangeiro. Embora agradeça a possibilidade de assim poder viver do seu trabalho, não deixa de ver alguma perversidade em todo este circuito e na forma como a arte sai do seu estúdio como exemplar único da sua expressão se pode tornar como elemento decorativo para outrem, questão em que não parece perder demasiado tempo a pensar. A complexidade com que pensa o que acaba por pintar parece não lhe deixar espaço mental para tal.

No fundo, como explora na conversa mais à frente, para si o maior desafio da pintura continua a ser o que passa nas telas ou nos suportes que escolhe para o trabalho. A forma como os pigmentos reagem ou diferentes acabamentos conferem dinâmica a uma imagem. De resto, a sua formação, que conta com uma passagem por São Francisco, onde teve oportunidade de trabalhar escultura, e as suas referências — pintores como Goya, Wyeth ou Philipe Guston — dão sinais do potencial da sua direcção. A exploração artística e dedicada do mundo real, num corpo de trabalho que cruza disciplinas em busca da perfeita expressão, pode parecer um exercício trivial mas isso só é porque continuamos a ter jovens como o Gonçalo, extraordinários.

Questões como “para que serve a pintura” ou “o que faz de alguém um bom pintor” têm múltiplas respostas que variam com os tempos. A arte relaciona-se de um modo simbiótico com a vida que a rodeia e ganha interesse e valor nessa sua relação. Pintores como o Gonçalo podem não ter uma proposta visivelmente inovadora e não ser o estereótipo daquilo que imaginamos como arte contemporânea mas encerram na consistência do seu trabalho ideias valiosas que cabem ao público decrifrar. A importância do detalhe no dia-a-dia, a dedicação que implica compreendermos situações aparentemente banais e as múltiplas histórias que uma só imagem pode esconder são momentos que tomamos como garantidos na azáfama das nossas vidas e que só a arte nos pode devolver.

A entrevista rapidamente descambou, transformando-se numa conversa casual, não por isso menos interessante. Na volta ao estúdio vimos, por exemplo, dois papéis intrigantes cada um com o nome de 11 artistas que ficámos a saber tratar-se da seleção de cada um dos elementos do estúdio, Gonçalo e Rui. Sem grande importância por si só, esse papel acabou por ser revelador da intersecção entre a seriedade da pintura e a sua naturalidade para quem faz dela vida.

A conversa sobre referências fez os livros saltar da estante e, na mesma toada, uma pasta que guarda há anos. Dos desenhos ao desafio com o irmão que lhe dizia o que pintar, ao estilo “um tigre com asas de robot e garras de wolverine”, passaram anos e muitas horas de dedicação mas a paixão que se traduz no entusiasmo da conversa parece permanecer intacta. Os desafios são outros, mas a alegria de os superar continua a ser a mesma.

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  • João Gabriel Ribeiro

    O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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