Estação de Entrecampos ganha mural de arte urbana pintado por mulheres

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Estação de Entrecampos ganha mural de arte urbana pintado por mulheres

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A promoção da arte urbana é vista como uma das melhores formas de combate ao graffiti ilegal.

As estruturas de cimento do acesso pedonal da estação de comboios de Entrecampos serviram de tela a quatro artistas mulheres, nos últimos dois meses. Numa cidade onde a representação feminina no graffiti ainda é pouco visível, os habitantes gostam do que vêem e pedem mais acções do género. A arte urbana, “quando bem enquadrada, embeleza muito a cidade”, diz uma moradora – “é mesmo muito importante que o façam”, reforça.

Um utente dos comboios pede mais murais e que se comece a distinguir “um trabalho muito digno” dos graffiti ilegais e do vandalismo. E foi esse mesmo o objectivo da Infraestruturas de Portugal (IP), que em parceria com a Galeria de Arte Urbana (GAU), entidade dependente da câmara municipal, ao promover a criação desta galeria a céu aberto. A ideia é “incorporar graffiti regulados em espaços recorrentemente vandalizados” e transformá-los em locais mais agradáveis, limpos e seguros.

Maria Virgínia, 65 anos, e Manuela Ferreira, 68 anos, observam, com curiosidade e alguma surpresa, o novo mural de arte urbana feminino, junto ao acesso pedonal da Estação de Comboios de Entrecampos, na Avenida Álvaro Pais. “Ninguém fica indiferente, a condição da mulher está representada naquelas paredes, o que não é comum”, comenta Maria Virgínia, moradora na freguesia das Avenidas Novas. “Podiam iluminar as pinturas, à noite, para todos verem”, sugere Manuela Ferreira, também habitante daquela parte da cidade.

Nos últimos dois meses, quatro artistas portuguesas – Maria Imaginário, Margarida Fleming, Tamara Alves e Patrícia Mariano – criaram uma galeria a céu aberto, a convite da Galeria de Arte Urbana (GAU), da Câmara Municipal de Lisboa (CML) e a Infra-estruturas de Portugal (IP). A iniciativa, intitulada A Lata Delas, concluída no início deste mês, está a ser elogiada por quem utiliza a estação de comboios e frequenta aquela parte da cidade.

Habib Niambela, 26 anos, natural de Lyon, em França, percorre as pinturas com a câmara do telemóvel. “Estou a filmar porque, em Lyon, não há nada disto. E acho incrível a street art em Portugal, é muito bem feita”, elogia, enquanto aproxima o smartphone dos grafitti preferidos. A trabalhar em Lisboa, desde Junho passado, Habib passa na estação de comboios todos os dias. “Vi quando começaram a pintar e acabei por acompanhar o trabalho. O resultado final está espectacular, espero que façam mais”, diz, enquanto se dirige para o interior da estação de comboios.

Maria Virgínia, 65 anos, continua cá fora a apreciar a obra. “Aquelas duas mulheres, com maçãs na cabeça, carregam um fardo. Talvez seja o pecado. Aquele rosto, dividido ao meio, pode estar relacionado com a máscara que temos de usar no dia-a-dia”, arrisca uma interpretação. Além dos graffiti darem a conhecer o trabalho das artistas, a moradora elogia o facto destas obras poderem, desta forma, ser apreciadas por todos os que circulam naquele acesso. “Muitas pessoas não têm possibilidades financeiras para frequentarem museus, e este mural acaba por ser uma oportunidade para todos contemplarem a arte”, diz. Maria pede, por isso, mais iniciativas deste género. “Quando bem enquadrada, a arte urbana embeleza muito a cidade. É mesmo muito importante que o façam”, considera.

Na passagem pedonal fronteira à estação de comboios de Entrecampos, as pessoas também andam em sentido contrário, apressadas, escapando aos olhos de muitas o recente mural.  “Só fico triste porque quase ninguém repara nas pinturas. Para muitos, é um bocado de tinta espalhada na parede. É um trabalho, porém, muito digno e tem de se começar a distinguir dos graffiti ilegais e do vandalismo, porque há aí muita falta de respeito por este trabalho”, diz Silveira Lopes, 84 anos. Começou a ser um utilizador assíduo da linha ferroviária há pouco tempo, quando teve um AVC que o impediu de continuar a conduzir. Desde que anda mais a pé, explica, começou a ter mais tempo para observar a cidade. “Há zonas muito abandonadas, onde se podia reproduzir este trabalho”, propõe.

Dentro de um café sombrio, na estação, Ana Fernandes, 35 anos, acompanhou, nos últimos dois meses, as pinturas. “Não tem nada a ver com o que estava antes, muros cinzentos e sem vida. Dá uma alegria grande a quem vem para aqui, todos os dias”, comenta. Enquanto beberica um café, Heitor Pacheco, 55, também elogia o trabalho. “Dá uma vida à estação, que já precisava. Agora, vamos ver se não vandalizam”, receia.  E há quem peça que o mural se estenda ao interior da estação. “Podiam pintar dentro das estações, nos túneis, e no metro, precisamos de ver mais cor”, sugere Odete Guimarães, 37 anos.

A Galeria de Arte Urbana nasceu há uma década e o município tem promovido diversas intervenções de pinturas em murais, mas esta deverá ser “a primeira galeria colectiva de mulheres”. Numa cidade onde a presença da mulher ainda é pouco visível, principalmente na arte urbana, a artista Patrícia Mariano, que teve aqui uma das primeiras experiências de pintura “de grandes dimensões”, congratula este tipo de iniciativas. Só lamenta que ainda se tenha de dizer “este é um mural só de mulheres”. “É flagrante a diferença entre o número de artistas de street art homens e mulheres, somos claramente muito menos. As coisas estão a mudar, mas, além de nós, há mais meia dúzia, em Lisboa. Haver a necessidade de pedirem [a GAU] um mural só feito por mulheres já é um sinal de que algo não está bem”, diz.

Inicialmente, Patrícia Mariano, Maria Imaginário, Margarida Fleming e Tamara Alves ainda pensaram fazer um graffiti conjunto, mas rapidamente perceberam que as pinturas individuais funcionavam melhor. “Temos estilos tão diferentes que pensámos que faria mais sentido fazer um corredor a mostrar as nossas obras, a marca de cada uma”, explica a’O Corvo.

A pintar na rua há pouco mais de um ano, Patrícia é responsável, entre outros, pelo desenho de um rosto feminino dividido em dois, duas mãos a segurar um coração e uma mulher “deitada entre o dia e a noite”.  A grafitter diz que a criação foi “completamente livre” e não seguiu nenhuma linha condutora específica. “Por vezes, há uma intenção ou uma história, mas a maior parte das vezes é uma descoberta, um processo criativo. O coração tinha um claro objectivo, de um coração aberto a todos, já a cara divida ao meio não tinha. Pode querer dizer que os olhos dizem uma coisa e a boca outra, ou outra coisa qualquer. Não gosto de explicar as minhas pinturas, prefiro que as pessoas as interpretem”, explica.

Margarida Fleming, há mais anos a deixar a sua marca pelas fachadas da cidade, diz que “foi um desafio pintar num local bastante movimentado” e em Dezembro, “numa altura de chuva e frio”. Mas a grande afluência de pessoas naquela zona, admite, acabou por ser benéfica. “Ouvimos opiniões e motivações de quem lá passava, as pessoas mostraram-se muito receptivas a este tipo de intervenções”, conta, em depoimento escrito a ‘O Corvo. O mural, explica ainda, “quer chegar a todos, a diferentes gerações e maneiras de estar na vida”. “É essa a força da arte urbana, ser acessível a toda a gente. Entrecampos é uma zona bastante grafitada e acho que a intenção da GAU é travar os grafiters, não indo contra eles, mas enfatizando a ideia, de uma maneira mais estudada e criativa. Não sei quanto tempo vai durar (muita gente passava e dizia ‘vamos ver se não estragam’), mas espero que permaneça durante muito tempo”, diz.

A Infra-estruturas de Portugal forneceu os meios logísticos para a intervenção, que, segundo comunicado enviado à imprensa, “enquadra-se na estratégia da empresa de manutenção de estações ferroviárias”. Este projecto pretende ser, em simultâneo, “uma homenagem à presença feminina na arte urbana e na cena artística contemporânea”. Através da “incorporação de graffiti regulados em espaços recorrentemente vandalizados, procura-se alcançar uma solução mais duradoura e razoável do ponto de vista financeiro, transformando estes espaços em locais visualmente mais agradáveis, limpos e seguros”, lê-se.

Texto e fotos de Sofia Cristino

(Nota: este texto foi originalmente publicado n’O Corvo, jornal digital dedicado à cidade de Lisboa, tendo sido aqui reproduzido com a devida autorização.)

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