A Coisa Mais Linda que passou no Netflix

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Coisa Mais Linda (foto de Netflix/DR)

A Coisa Mais Linda que passou no Netflix

A Coisa Mais Linda está longe de ser uma série consensual e, ainda que, vista por muitos como uma novela de poucos episódios, é a prova de que é possível prosperar mesmo nas condições mais adversas e que mesmo em momentos desesperantes há sempre uma luz ao fundo do túnel – preferencialmente com uma música de Tom Jobim como pano de fundo.

Rio de Janeiro, 1959. É noite. Fogo de artifício alegra a cidade. Uma representação de Iemanjá, a deusa do mar, é colocada sobre a água. Uma voz feminina cita Vinícius de Moraes, no seu Samba da Benção – “Uma mulher tem que ter qualquer coisa além da beleza, qualquer coisa de triste, qualquer coisa que chora, qualquer coisa que sente saudade. Um molejo de amor machucado, uma beleza que vem da tristeza de se saber mulher.”

São estes os primeiros minutos de Coisa Mais Linda ou, The Most Beautiful Thing, a mais recente aposta brasileira da plataforma de streaming Netflix, que estreou no final de Março. Se, do outro lado do atlântico, já nos trouxe apostas como 3% e O Mecanismo, porque não colocar agora as fichas numa produção que cruza o nascimento da bossa nova com a necessidade da emancipação feminina?

Criada por Heather Roth e Giuliano Cedroni, deixa logo antever, no genérico, as temáticas predominantes, onde várias figuras femininas aparecem, em ambientes algo boémios, com o êxito de Tom Jobim – “Garota de Ipanema” – como pano de fundo.

Maria Luíza (Maria Casadevall), uma jovem proveniente de uma família abastada de São Paulo, voa para o Rio de Janeiro, a fim de encontrar o seu marido, com quem iria abrir um restaurante. Porém, algo não está certo. A espera por Pedro no aeroporto faz-se longa e este não aparece. Eis que a protagonista chama um táxi e dirige-se ao endereço que ele lhe tinha dado, como sendo a sua morada. Chegada ao destino, Maria Luíza diz ao taxista que a morada só pode estar errada, ao que este responde “não dona, é mesmo esse buraco. Alteza, achava que era Copacabana?”. Desiludida, dirige-se ao edifício, onde o porteiro a informa que não vê Pedro há algum tempo. Definitivamente algo não está certo. Já no interior de casa, Maria Luíza percebe que o marido fugiu com outra e com todo o seu dinheiro. Completamente sozinha, numa casa que não é sua, e traída, pega fogo a todos os vestígios de Pedro.

Esse acto inconsciente faz com que Adélia (Pathy DeJesus), a empregada doméstica da vizinha, entre na sua vida, comouma verdadeira lufada de ar fresco. Mais tarde, Maria Luíza encontra-se com uma amiga de infância, Lígia (Fernanda Vasconcellos) e a cunhada desta – Thereza (Mel Lisboa), que é a única mulher a trabalhar numa revista feminina da época –, que a aconselham a lutar pelo que quer e a não voltar para São Paulo. Porém, os pais da protagonista, assim que descobrem o sucedido decidem que o Rio de Janeiro não é lugar para uma mulher sozinha, muito menos, para ser dona de um restaurante.

É aqui que Maria Luíza, agora Malu, mostra a sua fibra indo contra todas as convenções. Decide ficar no Rio, sozinha e sem dinheiro, determinada a abrir o dito restaurante, mas claro, com música ao vivo. Oferece sociedade a Adélia e ambas começam a trabalhar na abertura do local, indo contra todas as regras pré-definidas pela sociedade da época.

Malu, entretanto, conhece algumas personagens do mundo musical da época, incluindo Chico (Leandro Lima), um músico singular que lhe apresenta um novo estilo musical, uma espécie de mistura entre samba e jazz – aquilo que hoje conhecemos como bossa nova. Desde logo surge uma enorme ligação entre ambos, quer a nível sentimental, quer, também a nível musical pois, como Chico diz “Música é sempre uma óptima ideia”.

Ao longo de sete curtos episódios temos o figurino perfeito aliado a uma banda sonora excelente que evoca nomes clássicos como Ella Fitzgerald, Tom Jobim ou João Gilberto – cuja música dá nome à própria série. Aqui são abordados temas sensíveis, como o papel da mulher numa sociedade machista, a violência doméstica, o racismo (veemente retratado no papel de Adélia) e o alcoolismo (demonstrado por Chico). Porém, é precisamente nesta atmosfera adversa que vemos um grupo de quatro amigas, todas elas distintas, mas bastante complementares, lutarem pelos seus direitos – pelo direito a trabalhar, pelo direito a ser feliz, pelo direito a ser mulher – que deveriam já ser inatos. Todas estas personagens sofrem uma evolução enorme, revelando o extremo potencial das actrizes que lhes dão vida, com um especial destaque para Adélia, que além de lidar com “o inconveniente” de ser mulher é ainda negra e pobre. Estas quatro mulheres convidam-nos a fazer uma reflexão alargada sobre a sociedade, abordando conceitos tão actuais como o feminismo, a fragilidade, a emancipação e a resiliência. Contudo, apesar de o machismo retratado ser bastante real, a imagem demasiado limpa e idílica do Rio de Janeiro não corresponde à realidade da época. É esta a principal crítica negativa à série televisiva, que esperemos que seja melhorada numa segunda temporada.

A Coisa Mais Linda está longe de ser uma série consensual e, ainda que, vista por muitos como uma novela de poucos episódios, é a prova de que é possível prosperar mesmo nas condições mais adversas e que mesmo em momentos desesperantes há sempre uma luz ao fundo do túnel – preferencialmente com uma música de Tom Jobim como pano de fundo.

Texto de Ana Fernandes

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