O fim do iTunes: vira o disco, toca o mesmo

Procurar
Close this search box.
Foto de Markus Spiske via Unsplash

O fim do iTunes: vira o disco, toca o mesmo

A democracia precisa de quem pare para pensar.

Num ambiente mediático demasiado rápido e confuso, onde a reação imediata marca a ordem dos dias, o Shifter é uma publicação diferente. Se gostas do que fazemos subscreve a partir de 2€ e contribui para que tanto tu como quem não pode fazê-lo tenha acesso a conteúdo de qualidade e profundidade.

O teu contributo faz toda a diferença. Sabe mais aqui.

A aplicação que começou com um propósito simples foi sendo complexificada ao longo dos anos. Este ano a Apple decidiu colocar um ponto final no iTunes. Mas o que é que isso significa para a música?

O iTunes morreu. Mais de uma década depois de Steve Jobs o ter apresentado e criado toda uma área de negócio em torno do download, a Apple anunciou a substituição da aplicação por três apps distintas no macOS – à semelhança do que já existia no iOS. É o fim do iTunes e, de certo modo, o fim de uma era; a Apple abraça o streaming como o Spotify. Mas o disco muda, a música não: os artistas vão ter de continuar a navegar num mundo centralizado e governado por algoritmos.

Como tudo começou

Jobs disse que não só a Apple gosta de música, como esta faz parte da vida de toda a gente e que por isso é um mercado gigante, sem limites. No fundo, era seguro para a Apple enquanto negócio apostar em música, dizia, o executivo.

Foi em Janeiro de 2001, três meses antes de o iPod ser revelado, que a Apple apresentou e lançou gratuitamente o iTunes. A app, apresentada como uma ‘jukebox’, tinha um propósito simples: permitir a cópia de músicas de CDs para o computador, onde se podia criar playlists e então gravar CDs com essas playlists. “Rip. Mix. Burn” era o slogan do iTunes, fazendo jus a esta possibilidade de compilar música como queríamos e não como as editoras queriam. Em 2000, cerca de 320 milhões de CDs brancos, prontos para gravação, tinham sido vendidos nos EUA – dado que Jobs destacou na keynote do iTunes.

Screenshot de uma das primeiras versões do iTunes (via Macrumors)

https://youtu.be/4ECN4ZE9-Mo

Com o iTunes, no início da década, popularizavam-se de certa forma as playlists, que anos mais tarde com o advento do Spotify e do streaming se tornaram uma das formas mais comuns de consumir música. Mas o iTunes não foi a primeira aplicação a permitir a criação de playlists a partir de CDs comprados em lojas de discos – outras soluções existiam, mas a ‘jukebox’ da Apple marcava a diferença não só pela sua interface descomplicada mas também por ser inteiramente gratuita, sem pop-ups de publicidade, sem limitar a qualidade ou velocidade de codificação dos aúdio no processo de “rip” dos CDs, e com suporte para MP3.

O iTunes, há que dizer, não partiu de uma ideia original da Apple. A aplicação nasceu das cinzas de uma outra chamada SoundJam MP que dois amigos – Jeff Robbin e Bill Kincaid – começarem a desenvolver em 1998 e que a Apple adquiriu em 2000. Já em Cupertino os dois programadores do software simplificaram a interface, removeram algumas funcionalidades e adicionaram a possibilidade de gravar CDs.

Imagem via Apple/Wikimedia

Além de servir para “ripar”, misturar e gravar CDs, o iTunes permitia também ter no computador uma biblioteca pessoal de música, que podia ser transferida para leitores MP3 que, na altura, ainda sem o iPod já começavam a ser populares. O leitor de música da maçã foi apresentado em Abril do mesmo ano, e o iTunes – que à data só estava disponível para computadores Mac – deixou de ser só um ‘jukebox’ e passou a ser também a forma de os utilizadores transferirem música para o iPod e de gerirem este equipamento. Em 2002, a Apple recebeu um Grammy pelo seu contributo para a indústria musical com o iTunes e o iPod.

A iTunes Store e o download

A iTunes Store, a loja que popularizou a compra e download de música a 99 cêntimos cada e provocou o declínio do CD (até então usado para “transportar” música de uma loja para o computador), só foi lançada em 2003. A indústria musical estava a braços com um problema: pirataria. Os internautas estavam a usar aplicações como o Napster e o Limewire para descarregar música, em vez de se deslocarem até uma loja física, comprar um CD e depois fazer “rip” para o computador – muitas vezes as pessoas só queriam uma única música e não havia uma forma legal para a comprar a não ser adquirir o álbum completo. Não existia um mercado de música digital. A primeira solução da indústria à pirataria foi recorrer às instâncias judiciais e recorrer a malware para impedir a cópia de CDs.

A primeira iTunes Store (imagem via Apple)

A Apple surgiu com uma solução melhor: a iTunes Store não acabou com a pirataria mas desencorajou-a, com downloads de música a 99 cêntimos, que podiam ser gravadas em CDs para consumo pessoal, transferidas para iPods ou ouvidas em três Macs diferentes. As editoras estavam cépticas: temiam perder controlo do mercado da música e começar a fazer menos dinheiro pois as pessoas deixariam de comprar álbuns completos.

Mas o lançamento da iTunes Store primeiro só no Mac, ou seja, para uma audiência mais pequena, foi como que um teste ao conceito. Uma semana depois da abertura da iTunes Store, mais de um milhão de músicas tinham sido vendidas e, passado um mês, o iTunes chegou ao Windows (“a melhor app para Windows alguma vez escrita”, irnoziou Jobs). Outra das preocupações da indústria teve que ver com os utilizadores poderem pegar na música que compravam na iTunes Store e pirateá-la, mas a Apple chegou-se à frente com uma tecnologia DRM (Digital Rights Management) chamada FairPlay que restringia os ficheiros descarregados através da loja a dispositivos autorizados apenas pela empresa.

De certo modo, com o DRM, outros leitores além do iPod não podiam ler música da iTunes Store, uma estratégia da Apple para fortalecer o seu monopólio. O FairPlay levantou contestação de consumidores e de concorrentes, como a Palm, fabricante de PDAs; a Apple começou a vender músicas sem DRM na iTunes Store a partir de 2007, através de acordos individuais com cada uma das principais editoras a começar com a ENI. Em 2009, uma vez estabelecidos todos esses acordos (também com editoras independentes), a iTunes Store perdeu as restrições DRM, mas nessa altura a Apple já tinha largos anos de avanço.

Três dos muitos logos que o iTunes teve ao longo dos anos (imagens via Apple)

O início do fim do iTunes

Se inicialmente o iTunes significa música, ao longo dos anos a Apple foi-lhe dando outros significados. Com a chegada do iPhone em 2007 e do iPad três anos depois, a Apple transformou a sua descomplicada ‘jukebox’ na única ferramenta disponível para gerir estes equipamentos, sincronizar dados (incluindo contactos telefónicos e marcadores do Safari) e receber actualizações de software. A iTunes Store passou a vender filmes e também audiolivros, e o iTunes foi transformado também num cliente de podcasts e até numa rede social, o Ping (que dado o seu fracasso só durou dois anos). Em 2015 foi também no iTunes que a Apple integrou o seu novo serviço de streaming de música, o Apple Music, tornando a aplicação ainda mais sobrecarregada no Mac.

A mais recente versão do iTunes (imagem via Apple)

O iTunes passou a ter tanta coisa que, na última keynote, a empresa chegou a dizer, brincando, que iria adicionar um calendário e um navegador ao iTunes antes de dizer que o ia separar. Com a nova versão do macOS, o Catalina, que chegará depois do Verão, o iTunes dará lugar no Mac a três aplicações distintas: Apple Music, Apple Podcasts e Apple TV. O iTunes desaparece, mas não completamente. Na nova aplicação de música, a iTunes Store passa a ser uma funcionalidade que está oculta por defeito, sendo o serviço de streaming Apple Music o centro da nova interface – tal como acontece no iOS. O iTunes vai manter-se nas versões antigas do macOS e também no Windows, pelo menos por enquanto. Uma década depois, a marca ‘iTunes’ perde força.

Vira o disco, toca o mesmo

O iTunes moldou a indústria da música e o consumo de música a nível mundial numa época. A Apple não criou o primeiro ‘jukebox’ (como também não criou o primeiro leitor MP3), mas apresentou a solução com o melhor embrulho. Mas se o download se manteve seguro durante uns tempos como negócio, de repente o streaming foi tomando o seu lugar. Plataformas como a Pandora e o YouTube surgiram, este último como plataforma para a partilha de videoclipes, e em poucos anos o Spotify expandiu-se da Suécia para todo o mundo (ou quase todos) e passou a mudar a indústria que a Apple anteriormente mudara.

O conceito de pegar em álbuns, retirar músicas e misturá-las em playlists do iTunes era o mesmo do Spotify, só que agora não eram precisos CDs. O Spotify e, portanto, a nossa música está sempre acessível no computador, no telemóvel e até na televisão, e se alguma vez quisermos música nova é só escolher de um catálogo com muitos milhões de músicas. A resposta de Cupertino ao Spotify só chegou em 2015 com o nome Apple Music e depois da aquisição da empresa Beats; hoje os dois serviços competem taco-a-taco e dizem-nos que o streaming é o futuro.

No streaming, perde-se a ideia de posse de música. Deixamos de ter a nossa biblioteca pessoal, com a nossa música; em vez disso, subscrevemos um catálogo com milhões de músicas que podemos adicionar a playlists e também um serviço que nos avisa de novos lançamentos, diz o que os amigos estão a ouvir e inclusive faz playlists para nós. Ao subscrever uma plataforma de streaming, não só estamos a alugar música como se torna depois difícil transitar essa música, as playlists, etc. de uma plataforma para outra. Atenção: este conceito de aluguer não é novo.

Com a iTunes Store estávamos a verdadeiramente comprar música ou a comprar uma licença temporária à Apple? Tendo em conta as restrições de DRM e outras que a tecnológica impunha, os 99 cêntimos pareciam mais a segunda opção; um preço baixo por um serviço de aluguer bom, a promessa de ouvir música em qualquer lugar e digitalmente no iPod e noutros lados.

A nova aplicação de música da Apple (imagem via Apple)

O iTunes morre, mas as mudanças que trouxe para a indústria continuam e vão continuar a evoluir. Deixamos de descarregar, para alugar e ouvir em contínuo. A herança das playlists permanece no streaming. Mas o streaming e em particular o amadurecimento de plataformas como o Spotify e o Apple Music vai trazer novos desafios para a indústria musical: mudou-se de formato, mas o mundo da música vai continuar vulnerável e dominado por interesses comerciais e centralistas de duas grandes empresas, um mundo onde artistas – principalmente os mais pequenos – tentam encontrar formas de fazer dinheiro. É também um mundo que se avizinha cada vez mais dominado por algoritmos e pela gratificação instantânea dos novos lançamentos, dos singles que se tornam tendência. Se calhar, os melhores discos de 2019 só descobriremos lá para 2025.

Mas fora os comportamentos de consumo, a música digital parece estar de boa saúde. As receitas digitais cresceram 19,1% em 2017, de acordo com o relatório mais recente da indústria. Representaram mais de metade do dinheiro que a indústria recolheu nesse ano; o streaming foi o principal ‘culpado’ desse aumento. Os downloads digitais representam 20% de todas essas receitas, tendo sentido um decréscimo de 20,5%. Baixaram também as vendas físicas, 5,4% em relação ao ano anterior; apesar de continuarem a representar 30% de todo o mercado global.

Índice

Subscreve a newsletter e acompanha o que publicamos.

Eu concordo com os Termos & Condições *

Apoia o jornalismo e a reflexão a partir de 2€ e ajuda-nos a manter livres de publicidade e paywall.

Bem-vind@ ao novo site do Shifter! Esta é uma versão beta em que ainda estamos a fazer alguns ajustes.Partilha a tua opinião enviando email para comunidade@shifter.pt