Big Four vs Big Five: na Europa joga-se noutro campeonato

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Ilustração via Shifter

Big Four vs Big Five: na Europa joga-se noutro campeonato

Nem sempre que se fala de futebol se está a falar de futebol.

Nos tempos de extrema complexidade em que vivemos, nem sempre é fácil perceber as relações que, submersas, fazem mover indústrias, regiões ou países. A camada superficial, muito mais mediatizada do que o que a suporta, faz com que a grande maioria das pessoas se relacione apenas com o resultado final de uma série de processos. O produto já feito, a ‘rede social’, a medida política ou a bola a rolar nos campos de futebolrelvados são as imagens que predominam na mente da maioria das pessoas e que assim povoam qualquer conversa que se tente ter sobre estes tópicos.

Por muito que se tente aumentar a profundidade do debate, a ideia que se forma a partir da pouca informação que emerge torna-se forte, e numa espécie de ideologia que se configura como um obstáculo a análises críticas ou racionais – no universo da economia, J. K Galbraith enunciava ao escrever que “entre a possibilidade de mudar de ideias ou o de provar de que não há necessidade de as mudar, quase toda a gente se esforça pela prova” (tradução livre).

Em síntese, na incapacidade de prever com exactidão o resultado da soma nos novos factos, a tendência geral é a de os ignorar, permanecendo agarrado à ideia geral predominante. Este é um mecanismo de defesa que nos permite lidar com novas informações sem questionarmos permanentemente a base daquilo por que vivemos, mas que se torna uma ferramenta de auto-sabotagem do progresso crítico. De uma forma abusivamente simplista, poderíamos traduzir esta ideia na expressão popular “deixar andar”; num ensaio da aplicação da ideia aos nossos dias, basta olharmos à nossa volta e para as dezenas de temas dos quais propositadamente ignoramos a complexidade.

Quantos de nós alteraram a forma de utilizar redes sociais como o Facebook, mesmo depois de rebentarem escândalos como o da Cambridge Analytica e vir a público o tratamento abusivo dos dados levado a cabo por estas empresas? Quantos de nós passámos a ter atenção com o que, por exemplo, os nossos avós lá viam? Ou, noutro caso, qual é a ideia do que podemos fazer de concreto em reação a flagelos como o desmatamento da Amazónia? As respostas serão todas diferentes mas terão uma coisa em comum: serão condicionantes pelo ponto de partida de quem responder.

Um especialista em ciber-segurança, um marketeer, um vegan e um minimalista poderão ter todos formas distintas de abordar problemas como os descritos e propor leituras específicas e bem articuladas dos fenómenos; contudo, nas margens deste conhecimento especializado e na falta de um sistema de intermediação do conhecimento que seja perfeito, o senso comum estabelece-se apenas sobre uma ínfima parte do fenómeno.

Outros exemplos são observáveis no dia-a-dia. Nos telejornais, as temperaturas acima dos 30ºC em Setembro são “boas” porque permitem a “quem ainda está de férias aproveitar mais uns dias de praia”; na realidade, as consequências das temperaturas elevadas far-se-ão sentir em dezenas de outros sectores que, convenhamos, numa boa maioria podem ser mais importantes do que os hábitos de praia de parte da população em férias.

A ideia subjacente ao aqui descrito é a de que o contexto de onde parte a maioria da população (o conjunto dos seus valores, desejos, necessidades, traços identitários, hábitos, o que seja) influencia e muito a forma como determinadas matérias são percebidas. O título é propositadamente ambíguo e nesse sentido provatório. O termo Big Four serviu em tempos para mencionar as quatro maiores consultoras do mundo, mas é facilmente interpretado por um internauta como uma referência às quatro maiores empresas tecnológicas dos Estados Unidos, também conhecidos por GAFA (Google, Amazon, Facebook Apple); já o termo Big Five dá nome a um modelo predicativo de personalidade ou, para quem acompanha o mercado de transferências do futebol europeu, simboliza as cinco principais ligas (Inglesa, Espanhola, Italiana, Francesa e Alemã).

Se por esta altura te saltou à cabeça a ideia de fechar este artigo porque “lá está mais um a falar de bola”, fica mais um pouco, porque é precisamente sobre a ideia de que o futebol profissional é um universo muito mais rico (pun intended), que deve ser analisado sem os óculos da ideologia – e, portanto, com os olhos da crítica –, que adiante elencarei algumas ideias essenciais. Como explícito na introdução, serão estas ideias vectores de aprofundamento da análise de um assunto que nos afastarão do senso-comum. Aqui não haverá espaço para clubismos, clubites ou golos mal anulados; levaremos o futebol para fora de jogo para perceber a importância de manter um espírito crítico, mesmo nesta área aparentemente tão espectacular.

O pontapé de saída

O Mercado de Verão é sempre época para as transferências mais sonantes do futebol e o de este ano não foi excepção. Uma das novas jóias da coroa portuguesa, João Félix, foi protagonista de um das transferências mais caras do defeso – o jovem, com apenas 19 anos, foi vendido por 120 milhões de euros, a que acrescem 6 de comissões ao fundo intermediário, e vai auferir na próxima etapa da sua vida qualquer coisa como meio milhão de euros por ano. Longe de ser caso único, o caso de Félix é paradigmático e, por comparação permite-nos ter uma ideia de como o negócio do futebol evoluíra fora das quatro linhas. Recordemos Cristiano Ronaldo, que saíra do Sporting por pouco mais de 10% da soma de que agora falamos. Dir-se-á, e bem, que os tempos são outros; é mesmo sobre essas diferenças que devemos questionar-nos.

Para termos uma ideia, vejamos dois números: estudos apresentados pela FIFA apontam que no total combinado o mundial da Rússia tenha tido 3,5 mil milhões de espectadores, cerca de metade da população mundial com mais de 4 anos; já a liga mais lucrativa do mundo, a Premier League, viu os direitos de transmissão, que em 1992/1993 valiam cerca de 200 milhões, chegarem nas últimas épocas a um total de 5 mil milhões.

Este crescimento que pode parecer abstracto revela-se simples: com a globalização, jogadores, treinadores e clubes tornaram-se estrelas mundiais que, num circuito mediático devidamente oleado, atingem proporções superiores a actores de cinema, artistas pop ou grandes líderes mundiais.

As contas mais seguidas no Instagram (fonte: Wikipédia)

Na sequência deste crescimento da atenção dispensada mundialmente para o futebol, este fenómeno não é propriamente difícil de explicar. Mais uma vez, basta recorrermos à lógica da comparação para tudo se tornar simples e evidente. Se não vejamos: nos primórdios da internet, a publicidade nos sites era valorizada mais ou menos por igual, com o surgimento dos Big Four o mercado publicitário entrou numa tendência monopolística e quatro empresas cresceram acima do próprio mercado, porquê? Porque se todos os internautas se mantém em produtos destas empresas estes acabam por ser os mais interessantes para publicitar. A mesma lógica se aplica ao futebol na televisão; com a migração dos públicos para actividades como as redes sociais, o futebol continua a ser um dos temas que mais atenção cativa junto do espectador comum – daí que se dediquem horas e horas de comentários televisivos e se invista mais na compra dos direitos de transmissão dos jogos (especialmente dos clubes grandes com dimensão nacional ou internacional).

Resumindo e concluindo esta ideia: numa economia cada vez mais dedicada em extrair valor da atenção, a capacidade do futebol para arrastar multidões faz com que este se torne especialmente apetecível de transmitir em meios como a televisão. Posteriormente a sua contemplação acrítica – a análise superficial que se propõe em espaços de comentário, a idolatria e o culto da personalidade em lugar de análises potencialmente complexas da sua estrutura — contribui para a sua vigência.

O jogo pelo jogo

Mais do que um desporto, um espaço de convívio comunitário, o futebol criou através das suas competições internacionais, dos media especializados e de diversos outros intervenientes uma espécie de meta-narrativa que o faz vingar. Em campo vale mais um fora de jogo do que perceber como o jogo acontece fora das quatro linhas – cite-se a perspetiva e a pouca atenção dada pela maioria dos média ao caso Football Leaks em comparação com outros casos análogos como os Panama Papers.

Uma prova da existência dessa meta-narrativa é a forma como, se numa conversa questionarmos o valor de transferência, por exemplo, do João Félix, o mais provável seja que alguém responda com outro exemplo de futebol, tipo… Mbappé – trocando os exemplos pela lógica, temos a narrativa futebolística sempre pronta a legitimar-se a si própria, dissociando-se do resto da sociedade.

O resultado deste fenómeno é que mesmo para pessoas fora da sua influência a realidade começa a parecer abstracta – experimentem falar com alguém que não acompanhe futebol sobre os valores que aqui referirmos, o mais provável é que nem tenham consciência de que essas somas são reais.

Perante a existência de uma actividade inscrita na realidade (o jogo jogado vs. o jogo fora das quatro linhas), o futebol reveste-se de uma capa frequentemente legitimada por expressões como “só quem lá está é que sabe”, “poder institucional” ou outras que tais. A criação de um jargão próprio do desporto, a discussão da táctica, a polémica do fim-de-semana… causam uma dissociação quase completa entre o fenómeno e todas as suas ramificações. A fuga a esta norma pode mesmo ter como consequências os comentários clubísticos em barda, apelos a boicote ou até dar lugar a processos judiciais. Em sentido inverso, a aceitação táctica de qualquer prática por parte dos clubes de futebol, sempre com a conivência dos seus adeptos torna mais fácil práticas à margem da lei ou simplesmente duvidosas – perante quem diga os factos haverá sempre quem grite a fé podendo desequilibrar a balança.

Quem faz a assistência financeira para o mundo do futebol?

Esta corrente positivista feita ciclo vicioso pode ser o segredo do crescimento do futebol, da subida do valor dos direitos de transmissão dos jogos, contudo, para explicar o crescimento em termos financeiros é preciso relacionar outros factores. Desde logo é preciso perceber, por muito que seja de uma forma simples, aquilo que é a finança e aquilo que a excita.

Associada a esta tendência de crescimento das somas médias auferidas pelos clubes e pelas competições, está também, claro, a possibilidade de lucro com investimentos. Assim, o mercado do futebol tornou-se especialmente apetecível, numa primeira fase, para os bancos e, numa segunda fase, para instituições e agentes financeiros de outros tipos que se juntam a este universo de várias formas.

Recuperemos novamente o exemplo da transferência de Félix para percebermos como funciona concretamente (com a importante nota de que este não é caso único, apenas paradigmático). Segundo as notícias, que surgem na imprensa internacional, terá sido a 23 Capital a financiar a operação; neste caso, permitindo ao Atlético de Madrid o acesso à verba no imediato, como havia feito em muitos outros casos – estima-se que o fundo tenha cerca de 2 mil milhões de euros investidos entre desporto, música e entretenimento, sem que o seu enquadramento seja claro.

De outro modo, o dinheiro também pode surgir por investimento directo em clubes ou através da compra de posições de referência no quadro de acionistas, como, por exemplo, o caso recente de Idan Ofer, milionário israelita e principal investidor no clube português Famalicão, o caso do conglomerado chinês da Fosun, que comprou o Wolverhampton, ou o do Sheik, de Abu Dhabi, actual dono do Manchester City, ou mesmo a posição de Álvaro Sobrinho, antigo dirigente do BES Angola, no quadro de acionistas de referência no Sporting Clube de Portugal.

Nestes cenários investe-se dinheiro com a possibilidade de lucro e escudados numa certa opacidade. Recorde-se que ainda em maio deste ano se soube que a equipa recém-promovida ao principal escalão de futebol inglês, o Sheffield United, recebeu um investimento de cerca de 3,5 milhões de euros proveniente da família Bin Laden, algo que só soube meses depois, em tribunal.

Apito final

Não é por acaso que ainda este ano a Comissão Europeia determinou a inclusão do Futebol Profissional entre os 47 sectores ou actividades em risco de serem utilizados para lavagem de dinheiro ou outros fins ilícitos. As elevadas somas trocadas, a opacidade dos contratos de transferência entre clubes, a existência de intermediários geralmente substancialmente remunerados, a possibilidade de os jogadores, treinadores ou mesmo clubes assinarem acordos publicitários onde o dinheiro circula de um modo quase indiscriminado puseram o fisco europeu de olho posto na bola, e o grande travão ao espírito crítico que é a fé clubística, tornam o futebol num tema de difícil análise e debate para qualquer área da sociedade.

Neste particular, tem sido notórios, embora pouco mediatizados os sucessivos acontecimentos. O Football Leaks, por exemplo, que contém 60x mais documentos do que o leak promovido por Snowden, teve um tratamento absolutamente diferente do deste. Se num caso os media se apressaram a avançar revelações, no outro – o Football Leaks – acabou por esmorecer e ter os seus poucos ecos em publicações como o Der Spiegel ou New Yorker.

Como balanço de todo este jogo, é preciso percebermos, de uma vez por todas, e enquanto sociedade, que nem sempre que se fala de futebol profissional se está a falar de futebol; por detrás das equipas e à frente dos clubes existem muitas vezes as Sociedades Anónimas Desportivas (SADs), cujo objectivos pode ou não ser em prol do jogo. O que era uma diversão tornou-se um negócio de larga escala onde para além de grandes atletas competem altos players das finanças.

Em 2017, quando Inter e AC Milan se defrontavam não eram apenas dois clubes italianos que entravam em campo mas também dois grupos financeiros chineses. Hoje o mesmo jogo seria um EUA-China, uma vez que o clube histórico de Berlusconi trocou de mãos fazendo agora parte do portfólio do fundo norte-americano Elliott Management.

É por isso que não quando vemos o jogo, mas quando debatemos o que o envolve devemos ter alguma resistência ao clubismo. Tal como no caso dos Big Four, em que não podemos partir para elogios demasiado optimistas para as maravilhas que Facebooks e Instagrams nos oferecem, no caso das Big Five (as cinco ligas que movem mais dinheiro) devemos igualmente saber medir os prós, como a emoção e as alegrias mas também os contras, que podem passar pelo aproveito tácito para fins ilícitos da paixão de milhões.

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  • João Gabriel Ribeiro

    O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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