Sobre a condição de van Gogh e a quem dar ouvidos

Vincent van Gogh em auto-retrato (imagem via Google Art Project)

Sobre a condição de van Gogh e a quem dar ouvidos

Ao longo de mais de uma centena de anos, cerca de 150 médicos tentaram perceber o que se passaria, afinal, na mente de van Gogh.

Os relatos e as imensas cartas que trocou com o seu irmão e benfeitor Theo dão conta de um homem com uma personalidade excêntrica. A genialidade da sua arte não foi reconhecida no seu tempo e até aos dias de hoje a medicina têm levantado várias hipóteses sobre o que estaria na base dos seus comportamentos bizarros. Ao longo de mais de uma centena de anos, cerca de 150 médicos tentaram perceber o que se passaria, afinal, na mente de van Gogh. Propomos agora um olhar sobre alguns destes diagnósticos.

Consideremos primeiro a personalidade de Vincent. Em termos comportamentais é descrito como um indivíduo impulsivo que ficava irritado e frustrado com facilidade. É ainda conhecido por relações de extrema dependência com as pessoas que considerava mais próximas de si, como são conhecidos os casos do irmão Theo, do pintor Gauguin e das mulheres por quem se apaixonou.

A combinação destas duas características de personalidade resultava em algo patente em muitos registos: Vincent tinha discussões explosivas com estas pessoas, o que o deixava transtornado e em grande sofrimento. É ainda sabido que, no que diz respeito ao humor, oscilava entre períodos de extrema tristeza com episódios e elevada energia e euforia: “Não consigo descrever exatamente o que se passa comigo; ora tenho acessos horríveis de ansiedade, aparentemente sem causa, ora uma sensação de vazio e cansaço na cabeça … e, por vezes, tenho ataques de melancolia e de remorso atroz.”

Para além destes peculiares traços de personalidade e das variações de humor – que foram uma constante ao longo da sua vida – cerca de dois anos após se ter mudado para Paris começa a revelar um conjunto de sintomas relacionados com sensações paroxísticas inespecíficas na zona do estômago ou episódios de perda de consciência e de ausências.

Há relatos de episódios em que van Gogh fez movimentos peculiares com a mão enquanto tinha um olhar fixo e vazio, seguidos de momentos de confusão e amnésia para o sucedido. Além disso, sofria de alucinações visuais e auditivas. Todos os aspetos supracitados levaram a que tenham sido consideradas várias hipóteses diagnósticas:

Epilepsia do Lobo Temporal

Este tem sido o diagnóstico com mais apoiantes. Entre eles, encontramos o Dr. Rey (médico que assistiu Vincent depois do mítico episódio da orelha), o Dr. Peyron, do Hospício de St. Rémy (onde o pintor esteve institucionalizado), e o Dr. Gachet, que o acompanhou nos últimos anos de vida, entre outros médicos contemporâneos do pintor.

Os episódios de sensações estranhas e movimentos peculiares, acompanhados de perda de consciência ou de um olhar vazio, seguidos de um período de confusão e amnésia são, de facto, característicos da epilepsia. Quando estas têm origem no lobo temporal, não se verificam as convulsões motoras generalizadas e vigorosas que habitualmente associamos a esta doença, mas sim, os sintomas acima descritos que podem ainda ser acompanhados de alucinações auditivas e visuais.

Esta patologia pode ser acompanhada de algumas alterações comportamentais: oscilações de humor, irritabilidade, excesso de dependência, excesso de preocupação com questões filosóficas e religiosas (não esqueçamos que o pintor ponderou uma carreira como membro do clero) e ainda hipergrafia, que se traduz num excesso de vontade de escrever ou desenhar, que correspondem a diversos traços da personalidade de Vincent.

O facto de os seus sintomas se terem agravado quando foi para Paris, poderá, neste quadro, ser explicado por ter começado a consumir absinto de forma regular e excessiva: o absinto reduz o limiar convulsivo, facilitando a ocorrência de episódios de epilepsia.

Doença Bipolar

O diagnóstico de doença bipolar não pode ser afastado. Não explicando a totalidade dos sintomas e traços comportamentais do pintor, a verdade é que as oscilações de humor e as alucinações são características de uma doença bipolar grave.

É ainda sabido que a doença mental grave é o principal fator de risco para suicídio, que se crê ser a causa de morte do pintor. Se pudéssemos regressar no tempo e excluir a presença de doença orgânica, como a epilepsia do lobo temporal, o diagnóstico de doença bipolar seria o mais provável.

Perturbação da personalidade

Antes de mais, convém definir o que é uma perturbação da personalidade. Segundo o DSM-V — o grande manual de definições de patologias em saúde mental — uma perturbação da personalidade consiste na “presença de um padrão persistente de experiência interna e comportamento que se desvia acentuadamente das expectativas da cultura do indivíduo, que é difuso e inflexível, começa na adolescência ou no início da fase adulta, é estável ao longo do tempo e leva a sofrimento ou prejuízo”. Ou seja, são tipos de personalidade que são considerados disfuncionais, no sentido em que têm um impacto negativo na vida do indivíduo e dos que o rodeiam.

Pode parecer um conceito abstrato e confuso, mas na realidade considerando os 3 grandes grupos ou clusters de perturbações da personalidade consagradas pela literatura psiquiátrica, há quem considere que Vincent teria uma perturbação da personalidade do cluster B, dadas as relações com doenças do humor (como a doença bipolar) e com abuso de substâncias.

Os defensores desta teoria enquadram Vincent na perturbação da personalidade borderline, que se caracteriza por flutuações de humor, impulsividade, estabelecimento de relações interpessoais intensas, associadas a medo de abandono e que azedam com o tempo pelo excesso de drama envolvido. É referida como uma instabilidade estável, já que a única certeza é haver instabilidade.

Menções honrosas

Terminamos com algumas menções honrosas. Foi levantada a hipótese de Doença de Ménière, uma patologia que afeta o ouvido interno provocando episódios súbitos de perda auditiva, vertigem, náuseas e vómitos. Para os defensores desta teoria, tal patologia poderia explicar porque Vincent teria cortado a orelha (estaria a experienciar, nesse momento, um desconforto no ouvido?) ou porque é que as suas pinturas têm um aspeto distorcido (seria uma reprodução das suas vertigens?).

A intoxicação por digitálicos, nos quais se inclui a planta que lhe foi receitada para tratar a epilepsia é outra uma hipótese curiosa. A sequência de sintomas por intoxicação por digitálicos resulta na presença de xantopsia (ver a cor amarela de forma mais intensa que as restantes), seguida de alterações auditivas, e depois visualização de halos. A possível relação com o pintor deu origem a uma mnemónica que traduz estes sintomas: yellow-period (lembremo-nos dos girassóis!) – missing ear e halos in paintings.

Continuaremos, de certo, a debater o que se passava na mente de van Gogh e a quem dar ouvidos. Continuaremos ainda, felizmente, a apreciar a sua arte que atualmente desfruta o estatuto que sempre mereceu. É, contudo, demasiado tarde para ajudar a alivar o sofrimento em que viveu Vincent, particularmente nos últimos anos da sua vida.

Ficamos confortados com o pensamento de que nos dias de hoje estamos mais equipados para diagnosticar e tratar este tipo de patologias, ainda que haja uma longa caminhada coletiva a ser feita para eliminar o estigma que lhes está ainda associado.

Texto de Maria Moreno

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