Virou! Passaram dez anos da estreia dos Diabo na Cruz

Virou! Passaram dez anos da estreia dos Diabo na Cruz

De Norte a Sul, de Baguim do Monte a Aljustrel, passando pelo Chiado.

Curioso uma banda de músicos de Lisboa criar um som capaz de percorrer todo o Portugal. A retenção era, aliás, tocar no país todo (Jorge Cruz dixit). Esse som dos Diabo na Cruz foi tão catalogado que se torna enfadonho dez anos depois estar escrever mais do que uma/duas linhas sobre o assunto: muito resumidamente toda a gente disse que Virou! é uma fusão de música popular portuguesa (Cruz chumbou o termo “folclore”) e o rock anglo-saxónico.

Na altura, tive oportunidade de o entrevistar no Musicbox e na altura confessava-se agastado com a falta de compreensão da imprensa nacional perante o disco. Disse mais ou menos isto: “ninguém o percebeu”. E, de tempos a tempos, ao longo dos últimos dez anos, fui pensando nisto. Porque na altura toda a gente escreveu igual, rock de guitarras para aqui, tradição para acolá, sintomático da pedrada no charco que seria esse casamento de sons. Muito poucos aprofundaram a análise à lírica. Talvez fosse essa a intenção de Cruz quando me deu o disco e desafiou: “ouve, mas ouve como deve ser e escreve”. Não me diferenciei e escrevi na linha do que escreveu na altura. Mas há uns poucos anos, deparei-me com “Bom Tempo” e a letra levou-me a 2009, o melhor ano da FlorCaveira, o da estreia da Amor Fúria, o de João Coração, Samuel Úria e B Fachada e ocorreu-me que o “bom tempo” se referia à falta de vergonha perante a nossa língua na hora de compor uma canção, uma coisa que há muito não se via neste país.

Foi uma questão de tempo até me debruçar sobre o resto do disco e encontrar outras referências que o próprio Jorge Cruz foi revelando ao longo do tempo. Acontece, por exemplo, em “Tão Lindo”, mas sem metáforas tão rebuscadas: “onde é que hoje se penhora Um Moby português?”. O próprio haveria de confirmar que essa canção guarda essa ideia de que se “passou o tempo a achar que em Portugal os músicos deviam ser meras cópias do que de bom existisse lá fora.”. Parece haver mais ainda em “Tão Lindo”, como “a lebre está no prado, as silvas no silvado, ai é tão lindo, ai é tão lindo” que, numa interpretação livre pode ser algo como “em Portugal canta-se em português, lá fora em inglês, ai é tão lindo, ai é tão lindo”. E outros momentos fui percebendo em “Dona Ligeirinha” e em “Corridinho de Verão” e “Fecha a Loja”.

Mas seria redutor catalogar Virou! como álbum conceptual sobre a perda de vergonha na língua portuguesa. O disco é mais um intemporal retrato do país. Bem, talvez o “pára um momentinho, vamos ao Adamastor” de “Dom Fuas Roupinho” esteja desatualizado, mas quase tudo o que está aqui parece ter prazo de validade intemporal. A Dona Isilda que canta o fado, a Dona Ligeirinha enquanto mulher moderna e assertiva (pertinência em 2019 superior à de 2009), o António das Chamuças, as referências à literatura. Eu próprio já estive num casamento perto de uma rotunda no Cacém. De Norte a Sul, de Baguim do Monte a Aljustrel, passando pelo Chiado. Dito isto, não faço ideia se finalmente entendi o disco, mas em 2009 como em 2019 é um prazer voltar a este retrato.

 

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