Animação suspensa: um estado entre a vida e a morte em que pode haver salvação

Animação suspensa: um estado entre a vida e a morte em que pode haver salvação

Descobriu-se que a temperaturas progressivamente mais baixas, o metabolismo das nossas células vai progressivamente decrescendo, consumindo níveis cada vez mais baixos de oxigénio.

Foi no passado mês de Novembro que Samuel Tisherman, cirurgião e investigador no Centro de Medicina da Universidade de Maryland, em Baltimore, anunciou ter feito a primeira animação suspensa num ser humano. Esta técnica ainda pouco falada, pretende aumentar as horas de vida de indivíduos em risco de morte eminente por lesões traumáticas que condicionam a perda substancial de volume sanguíneo, por forma a que as lesões sejam cirurgicamente corrigidas.

Metabolismo e temperatura

Desde há vários anos que se sabe que a nossa temperatura corporal condiciona a actividade metabólica das nossas células e, consequentemente, dos nossos órgãos. As células do nosso organismos, à temperatura considerada normal, cerca de 36-37ºC, necessitam de uma determinada quantidade de oxigénio para funcionarem de forma fisiológica e produzirem energia. Em condições patológicas, em que o oxigénio não chega às células, começamos a verificar o aparecimento de lesão e morte celulares, com danos que muitas vezes são irreversíveis. O nosso cérebro, por exemplo, não aguenta mais do que 5 minutos sem suplementação de oxigénio. A partir deste período começam a estabelecer-se alterações definitivas e irrecuperáveis. No entanto, descobriu-se que a temperaturas progressivamente mais baixas, o metabolismo das nossas células vai progressivamente decrescendo, consumindo níveis cada vez mais baixos deste gás. Verificou-se aliás que a temperaturas baixas, a actividade de determinadas células, nomeadamente cerebrais, abranda de forma tão marcada que quase pára, necessitando de quantidades incrivelmente mais baixas de oxigénio para garantir a sua sobrevivência.

Ressuscitação e Preservação de Emergência

Este pressuposto é o que está na base da animação suspensa ou, da chamada técnica de Ressuscitação e Preservação de Emergência (em inglês, Emergency Preservation and Ressuscitation – EPR). A EPR consiste no arrefecimento rápido do doente, através da substituição do sangue circulante por uma solução de cloreto de sódio arrefecida (o vulgar soro). O organismo fica então a uma temperatura aproximada de 10-15ºC e a taxa metabólica cai a pique, deixando o organismo quase num estado de “hibernação – estado de animação suspensa.

Quando temos um indivíduo que nos entra no Serviço de Urgência, trazido pelo INEM, após ter levado um tiro ou uma facada com atingimento de um vaso importante e perda de um grande volume de sangue, este vai-se apresentar quase sem sinais vitais (pulso muito fraco, tensão arterial muito baixa, entre outros). Por palavras leigas, este doente está quase a morrer. A primeira coisa que temos de fazer se o queremos salvar é parar a hemorragia, porque sem sangue não há oxigénio a chegar às células e os órgãos morrem. Em alguns casos, as lesões são tão profundas que apenas conseguem ser corrigidas com uma cirurgia de urgência. Infelizmente muitos destes doentes não conseguem manter-se vivos tempo suficiente para que a cirurgia ocorra porque a perda de sangue é tanta e de forma contínua que o doente não chega nem ao bloco operatório, ou morre poucos minutos depois de lá entrar.

É nestas circunstâncias que necessitamos de uma manobra de “paragem no tempo”, como é a EPR. Na EPR o doente entra num estado de hipotermia com consumos metabólicos mínimos, dando mais tempo aos cirurgiões para estancarem as hemorragias. No fim das lesões identificadas e corrigidas cirurgicamente, o sangue do doente (juntamente com algumas unidades transfundidas) voltam a ser reintroduzidas no organismo reaquecendo-o e trazendo-o de volta ao seu metabolismo basal.

E quais os riscos?

Esta não é de todo uma técnica isenta de riscos. Em primeiro lugar esta “paragem no tempo” não é ilimitada. Apesar de ainda não se conhecer qual o limite de tempo específico que não deve ser ultrapassado, sabe-se que quanto maior o período de tempo em que o organismo estiver sem suplementação de oxigénio, maior a probabilidade de morte e de lesões sequelares definitivas. Pensa-se, no entanto, que o organismo humano não consiga aguentar mais de duas horas em estado de hipotermia.

Por outro lado, e mesmo cumprindo o tempo limite de 2 horas, sabe-se que existem lesões associadas à reperfusão dos tecidos e que, como dito anteriormente, quanto maior o tempo sem perfusão, maior a probabilidade de lesões irreversíveis, sobretudo a nível neurológico. Nas tentativas de EPR feitas, tanto em humanos como em animais, é sempre dado ao doente um conjunto de medicamentos que têm como objectivo reduzir estas lesões. No entanto, hoje em dia, ainda não conhecemos todos os mecanismos associados às lesões de reperfusão e portanto o risco continua presente.

Contexto Histórico

Os primeiros estudos publicados sobre a aplicação da hipotermia em condições de choque hemorrágico ameaçadoras da vida apareceram no final do século XX, com a autoria deste mesmo investigador, Tisherman, que se começou a debruçar sobre este tema em estudos com cães. Publicou o primeiro artigo em 1990, seguido posteriormente de um em 1991 e outro em 1996. No final da década de 90 publica ainda outros dois estudos neste âmbito, mas com estudos em ratos, um em 1998 e outro em 1999. Já no ano 2000, é publicado um novo estudo em porcos, o primeiro com esta espécie, da autoria de Rhee.

Tisherman manteve-se sempre ligado a esta área e a produzir estudos clínicos com o objectivo de desenvolver e melhorar esta técnica. Em 2002 publica pela primeira vez um artigo onde faz menção ao termo “animação suspensa”. Desde então e até aos anos mais recentes publica ainda mais dois artigos em ratos (um em 2003 e outro em 2007 e mais dois artigos em cães (um em 2004 e outro em 2006), com uma evolução crescente da técnica aplicada e dos resultados obtidos.

Mais recentemente em 2016, publicou um artigo onde fala pela primeira vez em EPR – Ressuscitação e Preservação de Emergência.

Por último, publica em 2017, o artigo que sustenta esta notícia, e que tem por base o ensaio clínico em humanos a ser desenvolvido no Centro Médico da Universidade de Maryland. Este ensaio clínico, que já se encontra na segunda fase da sua execução, foi aprovado pela Food and Drug Administration (FDA – entidade reguladora de fármacos nos USA) e pretende ser aplicado a 20 doentes com lesões traumáticas e hemorragias subsequentes com risco de vida. Estes doentes vão ser divididos em dois grupos: um que será submetido a EPR e outro que será submetido ao protocolo de emergência clássico, actualmente em vigor para esta situação clínica.

Os doentes serão selecionados para cada um dos grupos do estudo de acordo com a disponibilidade da equipa de cirurgia treinada em EPR, na altura em que derem entrada no Serviço de Urgência. Sempre que a equipa estiver disponível os doentes entrarão no primeiro braço do estudo – EPR – sem necessidade de assinar um consentimento informado, uma vez que se trata de uma situação de risco de vida para a qual não existem actualmente alternativas terapêuticas eficazes. Caso a equipa de cirurgiões não esteja disponível, o doente entra automaticamente no segundo braço do estudo e é submetido a Toracotomia de Emergência. Nesta técnica o tórax do doente é aberto, a aorta é clampada (para aumentar a quantidade de sangue que chega ao cérebro) e é feita uma massagem cardíaca via aberta (compressão manual do coração para gerar fluxo sanguíneo). A taxa de sobrevivência global destes pacientes é cerca de 10-13%, na maioria dos estudos, com uma taxa de sobrevivência neurológica intacta tão baixa quanto 2%.

Apesar do ensaio clínico ainda estar a decorrer e não querer revelar os resultados alcançados até agora, Tisherman afirma numa entrevista dada ao New Scientist já ter colocado o primeiro doente em animação suspensa. Espera-se que os resultados deste ensaio clínico sejam publicados no final de 2020.

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  • Marta Magalhães

    Interna de formação específica de Medicina Geral e Familiar, mas para além de médica sou também uma amante da ciência no geral. Leio livros de Medicina no trabalho e livros de Física nos tempos livres. Escrevo por isso sobre ciência, desde a grande Biosfera que é o planeta Terra, à mais pequena partícula como o electrão.

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