Os docs que vamos voltar a ver nos anos 20

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Os docs que vamos voltar a ver nos anos 20

As perguntas eram tantas que o Shifter decidiu não escolher o melhor da década. Procurámos antes seleccionar aquilo que, criado na década que agora acaba, vale a pena ser revisitado na próxima.

Escolher os melhores da década é uma actividade ingrata. Quem decide o que é melhor? Que critérios fazem de uma obra melhor que outra? A popularidade na crítica? Entre o público? E como lidar com as limitações da memória humana? Sim, com o facto de mais facilmente nos lembrarmos daquilo que ouvimos ontem do que do filme que há oito ou nove anos nos marcou?

As perguntas eram tantas que o Shifter decidiu não escolher o melhor da década. Procurámos antes seleccionar aquilo que, criado na década que agora acaba, vale a pena ser revisitado na próxima. Queremos que entres nos novos anos 20 com uma lista de bons discos, livros, filmes, docs e séries que merecem ser vistos e revistos e que achamos que continuarão a representar muito para o mundo nas décadas que se seguirão.


The Imposter – Bart Layton

Por Daniel Hoesen

Quando a vida real é mais estranha que a ficção, já dizia o RAP “dava um filme indiano”, não é? Ora, este documentário narra a estória de um parisiense de nome Frédéric Bourdin aka The Chameleon, um mentiroso – nato, corajoso e charmoso – que em 1997, aos 23, convenceu as autoridades dos dois lados do Atlântico, ao ser ‘encontrado’ em Madrid, que era Nicholas Barclay, um puto texano de 13 anos que desapareceu em San Antonio enquanto jogava basebol, fazia 3 anos. Han?! O quê?! Yep, e a família Barclay também o ‘aceitou’, embora tanto o cabelo como os olhos fossem escuros, invés de loiro e azul respectivamente. Ah e o novo Nicholas veio também com sotaque francês – yup, mind blowing!

Com o desenrolar do filme, com testemunhos dos Barclay e entrevistas com Bourdin, descobrimos que o francês desde cedo fez ‘carreira’ da personificação de crianças desaparecidas e órfãos, viajando por toda a Europa com o objectivo de ser admitido pelos respectivos serviços sociais. Quanto à família… pah, vejam! É um documentário dramático quanto baste, de digestão difícil e que nos envolve nas diferentes facetas da verdade – são inúmeras as vezes em que damos por nós ora em suporte da família, para que eles encontram o seu puto, ora outras tantas vezes a torcer que Bourdin encontre uma ‘família’ e uma ‘vida normal’. Embora tudo nesta estória seja verdade-verdadinha, tudo aconteceu no mundo real, ficamos sempre com a impressão que todos os intervenientes são personagens no seu próprio filme, principalmente o Bourdin. Ok, não é bem ‘filme indiano’, não é Bollywood, mas com tanto ‘twist and turn’ é definitivamente digno de um thriller de Hollywood.

HyperNormalisation – Curtis Davies

Por Daniel Hoesen

Mais que um documentário, HyperNormalisation é um ensaio (de quase três horas!) do documentativo icónico Curtis Davies, que tenta mapear o caos sócio-cultural e geopolítico dos últimos 50 anos no mundo e que deliberadamente nos deixa com uma sabor amargo de teoria da conspiração.

Muito ao seu estilo, é emocionalmente desgastante, catalisador de uma ansiedade terrível e desesperante. Exige bastante do espectador, a narrativa saltita e pula, entrelaçando passado, presente e futuro – sendo esse mesmo o propósito do documentário. Não é material para nos sentarmos com família e amigos para uma sessão à frente da televisão, preparem-se para fazer pause e rewind muitas vezes e tenham o browser aberto (desktop ou mobile), vão precisar de múltiplos tabs e muita Wikipédia. Uma mixtape de tecnocracia, internet, fake news, cyberspace, radicalismo, empreendedorismo, consumismo, elitismo, burocracia, capitalismo, imperialismo, primeiro e terceiro mundo, ocidente, médio oriente, oriente, conceitos como constructive ambiguity e non-linear warfare – preparem-se e boa sorte!

A jeito de resumo, de certeza que se lembram do Manufacturing Consent do Chomsky (geração de propaganda para consenso público), a HyperNormalisation do Davies é mais ou menos o mesmo, mas mais onda (a) da neutralização do público, (b) da sua inação e letargia, e (c) da sua polarização por vias de desinformação e conflito. Ambos, servem o mesmo objectivo: o poder das elites, das corporações e do Estado.

Anyway, para uma caricatura barata, imaginem uma Casa dos Segredos à escala mundial, produzido em colaboração pela CMTV, a Fox News, a MTV e a CCTV, com guião pelo 4chan e The Onion em esteróides, como estrelas temos Khadafi, Trump, Blair e Putin e outros suspeitos do costume. Jokez, mas ya é esse o mundo em que vivemos, certo?! Feliz Ano Novo!

Democracia em Vertigem – Petra Costa

Por João Gabriel Ribeiro

Este documentário vale tanto pela obra como pelo timing ou por quem o fez. Em Democracia em Vertigem, Petra Costa mostra os bastidores da grande viragem política que marcou o Brasil nos últimos anos. Com acesso ao lado mais secreto da vida política brasileira, a realizadora mostra como viveu o mandato de Lula da Silva e como o movimento que levou ao impeachment de Dilma Rousseff teve consequência nos tempos conturbados que se seguiram. O documentário oferece-nos uma perspectiva de bastidores, sobretudo do Partido dos Trabalhadores, com cenas únicas, gravadas em tempo real que enriquecem a veracidade da obra e revelam a sua parcialidade, sem beliscar a sua qualidade.

O filme eleva-se por não tratar só de política de um perspectiva exógena; pelo contrário, Petra usa-se a si própria como termómetro para os acontecimentos, e num dos volte-faces do documentário revela laços familiares que a unem à teia de influências que vai moldando o Brasil, acrescentando uma camada essencial para percebermos a complexidade do cenário que se vive do outro lado do Atlântico.

José e Pilar – Miguel Gonçalves Mendes

Por João Gabriel Ribeiro

Depois de ter deixado uma marca no documentário português com Autografia, o retrato de Mário Cesariny – que era para ser um trabalho final de faculdade e acabou por ser muito mais do que isso –, Miguel Gonçalves Mendes leva o documentário biográfico além com José e Pilar. O filme, tal como o nome indica, mergulha no universo de José Saramago e Pilar del Río ao longo dos últimos anos de vida do Nobel da Literatura português.

Através de uma narrativa construída por Gonçalves Mendes a partir da realidade, vemos Saramago carregar todos os níveis de humanidade que consegue tendo como pano de fundo o contexto político e social que inevitavelmente acompanha. Ao seu lado, Pilar desempenha um papel de grande relevância a ser si mesma, a mulher convicta e segura das suas ideias que mais do que acompanhar Saramago lhe dá a mão. A si e aos planos que acredita ainda conseguir fazer num futuro que não consegue prever.

Através do olhar de Miguel Gonçalves Mendes, José e Pilar marca a década logo no seu começo pela sensibilidade de captar o que está fora de enquadramento, pela audácia de perceber a ténue linha entre quem filma e quem é filmado, e pelos ecos que ainda hoje continuam vivos. José e Pilar é uma história de amor que transborda qualquer tela e que nos interroga o que é, afinal, estar em casa.

Faces Places – Agnes Varda e JR

Por João Gabriel Ribeiro

Uma cineasta de 90 anos e um fotógrafo de 34 juntam-se numa carrinha para homenagear as pessoas reais do seu país, que normalmente vivem na sombra. Ela, Agnès Varda, ele, JR; dois coleccionadores de estórias com um corpo de trabalho que se distingue pela empatia que fazem questão de ter atrás e à frente da câmara.

Em Visages, Villages, Varda e JR descobrem as pessoas que fazem as vilas por que vão passando e descobrem-se um ao outro, com todas as barreiras que os seus anos de vida foram criando ou derrubando. Na carrinha de JR, imortalizam os rostos das personagens da vida real com quem vão falando, que acabam por ser devolvidas à comunidade em impressões a preto e branco de grandes dimensões.

Se em Os Respigadores e a Respigadora (2000), a cineasta nos dava a conhecer as franjas da sociedade francesa muitas vezes fora de enquadramento, e em As Praias de Agnès (2008) nos mostrava como os lugares afectivos compõem a nossa essência, em Visages, Villages leva todas as suas reflexões um pouco mais além, com a mão de um fotógrafo com idade para ser seu neto mas que, antes de tudo, é seu amigo. Pela estrada fora, Agnès Varda e JR batem de frente com diferentes camadas da sociedade francesa – do meio rural ao portuário – e permitem que, não só os franceses mas todos nós nos vejamos ao espelho, no tempo em que vivemos.

Ama-San – Cláudia Varejão

Por João Gabriel Ribeiro

O cartaz das Ilhas pode ser um bom convite para vermos Ama-San, mas é apenas a ponta do icebergue de uma série de referências visuais que ganhamos depois de ver o documentário de Cláudia Varejão.

Em Ama-San, Cláudia Varejão viaja até ao Japão para pôr lado a lado os testemunhos de três mulheres de três gerações diferentes que há 30 anos mergulham juntas na Península de Shima. Praticantes de uma tradição milenar que, como a própria realizadora refere, questiona “não só o papel da mulher na sociedade oriental como a própria natureza feminina”, integram um grupo que atualmente se situa entre os 50 e os 85 anos e que se encontra no limiar da extinção.

Neste jogo de rimas informais, Cláudia Varejão questiona a força do tempo, da idade e os limites dos limites. Através das estórias de Mayumi Mitsuhashi, Masumi Shibahara e Matsumi Koiso convida-nos a encontrar o que há de familiar no desconhecido.

Act of Killing – Joshua Oppenheimer

Por Edgar Almeida

Os responsáveis pelos massacres na Indonésia de 1965-66 são os protagonistas deste documentário de Joshua Oppenheimer. Nele, o realizador entrevista-os, levando-os a expor as razões, as desculpas e até os métodos que usaram para se livrar de cerca de um milhão de comunistas, chineses e intelectuais, quando faziam parte dos esquadrões da morte (que evoluíram para uma organização paramilitar oficial, surgida depois de uma tentativa falhada de golpe de estado).

Um documentário pungente, em que os relatos de massacres de um período negro da história são entremeados com imagens da vida quotidiana desses assassinos, que hoje em dia têm a família e vidas normais que negaram a tanta gente, e em que podemos por momentos ver um lampejo de dúvida sobre a moralidade dos seus actos no passado – que quase nos leva a simpatizar com essa pequena demonstração de humanidade. Numa década de extrema polarização e em que o conteúdo reaquecido dominou o panorama, este documentário consegue navegar pelos tons cinzentos da História, sem perder o rumo moral e apresenta-se como um dos produtos mais originais com que fomos presenteados em muitos anos.

The Internet’s Own Boy: The Story of Aaron Swartz – Brian Knappenberger

Por Mário Rui André

Aaron Swartz foi um miúdo que muito cedo mostrou ser diferente dos outros. Criou o InfoBase, um “repositório de conhecimento humano” antes da Wikipédia. Esteve envolvido na criação do formato RSS, da linguagem Markdown, das licenças Creative Commons e do site Reddit. Programou, escreveu no seu blogue, defendeu ideias e causas políticas que achava meritórias. Foi um pequeno génio, tratado por todos um como adulto. Partiu em 2013 depois de perseguido pelo Governo norte-americano de Obama. The Internet’s Own Boy: The Story of Aaron Swartz é um doc de 2014 que conta a história inspiradora do “menino da internet que morreu cedo demais” e ao qual podem assistir gratuitamente aqui.

Risk e Citizenfour – Laura Poitras

Por Mário Rui André

Não fazia sentido terminar a década sem mencionar duas figuras que definitivamente a marcaram: Julian Assange e Edward Snowden. Nem fazia muito sentido separar os dois documentários – Risk e Citizenfour. Foram ambos realizados por Laura Poitras que, enquanto trabalhava em Risk, um perfil sobre Assange, fundador da Wikileaks, foi contactada por Snowden. Desse contacto, nasceu Citizenfour, que acompanha todo o processo de troca de informações entre o ex-funcionário da NSA e o jornalista do The Guardian, Glenn Greenwald, em 2013, num quarto de hotel em Hong Kong.

Citizenfour e Risk cruzam-se em algumas partes e o primeiro liga-se também com Snowden, uma biopic em que o realizador Oliver Stone apresenta um perfil do denunciante norte-americano. Em Risk, Laura Poitras traça também um perfil, desta feita de Assange e desta feita puramente documental. É um filme obrigatório para compreendermos melhor o mundo e acontecimentos que pelas notícias que podemos ir lendo nos podem parecer desconexos. Um documentário mais denso que Citizenfour e que pode pedir um segundo visionamento.

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