BioShock é uma lição de história e filosofia para quem prefere a consola ao livro

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BioShock é uma lição de história e filosofia para quem prefere a consola ao livro

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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Bioshock aborda e, de certa forma, satiriza uma das obras mais influentes da história, A Revolta de Atlas, de Ayn Rand.

Bioshock é um franchise que se demarcou dos demais na indústria dos videojogos não só pela perfeita simbiose entre os elementos de First Person Shooter (FPS), Role Playing Game (RPG) e Survival Horror, como também pela sua excelente narrativa e banda sonora meticulosamente escolhida.

Não é de todo inédito um jogo incluir na sua história elementos alusivos a períodos históricos ou ideologias políticas, geralmente representadas de uma forma algo extremista; contudo, Bioshock aborda e, de certa forma, satiriza uma das obras mais influentes da história, A Revolta de Atlas, de Ayn Rand.

A liberdade de Rapture

Em A Revolta de Atlas, Ayn Rand, simulando uma realidade alternativa – mas tecnológica e politicamente similar à da época em que foi escrita a obra (década de 1950) –, estabelece o que hoje chamamos de Objectivismo, um ideal filosófico assente na realidade, na razão, no indivíduo e nos princípios do Capitalismo.

A Revolta do Atlas (imagem via Amazon)

Fá-lo através do protagonista John Galt, um génio milionário que afirma que a realidade é concreta e objectiva e que o que existe é somente aquilo que temos diante de nós. Expõe ainda que não vale a pena perder tempo a pensar que qualquer tipo de misticismo possa estar na origem da humanidade e do seu propósito de vida. Em suma, as acções do indivíduo são determinadas somente pela sua vontade e devem apenas responder ao seu intelecto. Posto isto, Galt incita os génios empresários e engenheiros da época a mudarem-se para um “mundo novo”, livre da opressão e corrupção de um governo de Washington que prega o Socialismo, e cujas leis, repugnantes e desrespeitosas, só servem para condicionar o crescimento do indivíduo verdadeiramente empreendedor.

Em Bioshock – e falando do primeiro jogo, homónimo do franchise -, John Gault é representado por Andrew Ryan, cujo o nome é, de certa forma, um anagrama de Ayn Rand com a junção das letras “REW” – completo o anagrama lê-se We ‘R’ Ayn Rand (nós somos Ayn Rand). O “mundo novo” que Andrew Ryan idealiza chama-se de Rapture, uma cidade subaquática que visa, tal como o nome indica, criar uma ruptura total com o resto do mundo aos seus olhos imperfeito. Em Rapture todas as grandes mentes poderão usufruir dos frutos do seu trabalho e das suas obras sem se preocupar com um governo usurpador que os obrigue a partilhar o seu suor com os parasitas do “mundo lá em cima”.

Imagem via Steam Community

“Eu sou o Andrew Ryan, e estou aqui para vos fazer uma questão. Não tem o homem direito ao suor da sua testa? “Não!” diz o homem em Washington, “ele pertence aos pobres.” “Não!”, diz o homem no Vaticano, “ele pertence a Deus.” “Não!” diz o homem em Moscovo, “ele pertence a todos.” Eu rejeitei essas respostas: em vez disso, eu escolhi algo diferente. Eu escolhi o impossível. Eu escolhi… Rapture, a cidade onde o artista não temerá a censura, onde o cientista não será limitado pela moralidade mesquinha, onde o grande não será constrangido pelo pequeno! E com o suor da tua testa, Rapture pode ser também a tua cidade.”

– Andrew Ryan, BioShock, 2007

Tal como Galt, Andrew afirma que um governo digno só existe se se limitar a proteger os interesses do indivíduo, afastando-se por completo do mercado, deixando que este se regule por si. Sendo esta a principal premissa da criação de Rapture, é irónico que seja também essa a razão da sua queda. Quando o jogo começa damos por nós a entrar numa cidade aquática já em ruínas. A causa dessa ruína? A falta de regulamentação no que toca ao Adam, uma substância altamente viciante, que permite reescrever o material genético do consumidor sem limites senão os da sua imaginação. Esta substância levou a que Frank Fontaine – o principal antagonista do jogo e auto proclamado rival de Andrew Ryan – orquestrasse uma guerra civil de forma a tomar o poder sobre Rapture e, eventualmente, traficar Adam no mundo lá em cima.

O Adam serve assim o propósito de satirizar toda a ideologia criada por Ayn Rand, alegando que todo o ser humano é corruptível, aquando submetido às circunstâncias certas, e que nem os maiores génios e engenheiros do planetas estão livres da sede de poder ou pura e simplesmente de errar. Contudo a narrativa procura ir mais longe, com a introdução das Little Sisters, crianças geneticamente modificadas e mentalmente condicionadas para recolherem Adam dos cadáveres espalhados por Rapture. As Little Sisters podem ser interpretadas como o veículo da produção da substância que a sociedade procura adquirir de forma desenfreada – uma crítica à vista grossa feita pelo consumidor do mundo actual face às compras ditas conscientes de produtos cuja base de produção assenta na mão de obra infantil? Cabe à moralidade de cada jogador decidir.

A salvação de Columbia

O terceiro jogo, Bioshock Infinite, leva-nos também para longe do vil mundo terreno, desta vez para lá das nuvens, para a cidade flutuante de Columbia.

Columbia é fundada por Zachary Comstock, um personagem baseado em Anthony Comstock, um político conservador norte-americano do século XIX, profundamente religioso e que se opunha a ideais de obscenidade, aborto, contracepção e prostituição e aquele acredita que Columbia é novo Jardim de Éden, cujo propósito é albergar e proteger os fiéis que procuram fugir da “Sodomia dos países terrenos”.

Desta vez a sátira é para com aquilo a que chamamos de Excepcionalismo Americano, uma ideologia que crê que, após a revolução de 1776, os Estados Unidos são uma nação diferente de todas as outras, que habitam na terra prometida por Deus, e cuja missão é transformar e guiar o mundo. A esta crença, acrescentam-se ainda os ideais religiosos de baptismo, salvação, penitência e perdão divina, ideais esses que terão de ser obrigatoriamente aceites pelos seus habitantes, sob a pena de serem ostracizados ou, pior, sentenciados à pena de morte – e prova disso foi a perseguição aos povos indígenas norte-americanos, para garantir a preservação de uma raça pura e digna da fé e da riqueza dadas pela terra prometida.

Desde cedo, nos deparamos com estes elementos no jogo, como, por exemplo, a humilhação e linchamento público de um casal interracial, onde o jogador é presenteado com o dilema de ser complacente com este ritual, atirando uma bola ao casal, ou de rejeitar por completo esta ideologia arremessando a bola contra o apresentador daquele sádico espectáculo.

Imagem via Steam Community

Apesar de Columbia querer romper com os vícios terrenos, esta não consegue escapar à guerra civil que opõe Comstock a Daisy Fitzroy, a líder destemida dos Vox Populi que renuncia os ideais puritanos e xenófobos que aquela cidade flutuante representa. Aqui estamos perante uma representação direta do conflito real entre Anthony Comstock e as activistas Emma Goldman e Margaret Sanger. O patriotismo é tão levado ao extremo por esta sociedade que um dos principais tipos de inimigos do jogo são George Washington’s motorizados, baptizados de Patriots.

A nossa recomendação é que invistam tempo ora com os jogos, ora com as obras e períodos históricos em que aqueles se baseiam, pois para além de serem experiências ricas em diversão e conhecimento, contemplam também questões muito reais e contemporâneas às quais devemos dar atenção.

Índice

  • Daniel Silva

    Frequentou a Universidade de Coimbra onde concluiu o Mestrado de Estudos Europeus e ganhou o bichinho da investigação e consolidou o vício da escrita. Posteriormente decidiu complementar os estudos em Aveiro, com o Mestrado de Marketing, área do qual já fora profissional numa multinacional e que agora trabalho como freelancer, onde procura ajudar as PMEs a contar as suas histórias e a crescer no mundo digital. Para além de perder imensas horas de sono a jogar, gosta ainda de escrever e tagarelar sobre cinema, videojogos e ocasionalmente política.

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