Eutanásia: o direito a uma alternativa

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Ilustração de Shifter com foto de Daan Stevens via Unsplash

Eutanásia: o direito a uma alternativa

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Uma exigência legal para que a vontade seja reiterada múltiplas vezes, junto de médicos diferentes e com competências na área da(s) patologia(s) em apreço, parece-me uma resposta de bom senso, que dá garantias de segurança e conforto.

Todas as vidas têm o mesmo valor. Esse valor é íntimo, reconhecido pelo próprio e pela sociedade, e intransmissível. E esse valor não está em causa.

Durante séculos lutámos pela vida na sua dimensão quantitativa: protegemos as populações, criámos vacinas, estruturámos uma rede de cuidados na proximidade dos doentes, evoluímos técnica e cientificamente no sentido de mais e melhores tratamentos. Temos vivido cada vez mais, quebrando barreiras provavelmente impensáveis pelos nossos antepassados.

Mas precisamos de viver melhor. Uma vida boa, ou uma vida digna, que nos faça orgulhosos de nós mesmos, do nosso percurso individual, das nossas contribuições para o coletivo. Uma vida que cumpra o nosso projeto para a vida. Com o prolongar da esperança média de vida, e com o acumular natural de patologias e debilidades, há cada vez mais pessoas a verem esse projeto interrompido ou esgotado. Depois de séculos em que respeitámos a nossa natureza íntima, que obriga a maioria de nós a ter medo de morrer, temos agora o novo desafio de responder aos nossos concidadãos que têm, de facto, medo de viver.

A vida digna de cada um impõe-se como reflexo das suas vivências, valores e expectativas individuais. É nesse sentido que a opção pela eutanásia cumpre a liberdade individual de cada um, no que há de fundamentalmente pessoal e único. A decisão será sempre do indivíduo. Tudo o resto é crime. A comissão técnica servirá de apoio à verificação da vontade, mas a vontade é a do indivíduo.

A questão da vontade de morrer é desafiante do ponto de vista científico. Até que ponto vai a nossa vontade? O que a motiva? O que pode alterá-la? Há muito a estudar e a desenvolver nesta área, mas parece-me impensável que estejamos à espera de uma resposta científica definitiva a essas questões para avançar para a possibilidade da eutanásia. Caso contrário, todas as decisões importantes que tomamos perante o Estado e a comunidade seriam impossíveis, e estagnaríamos por completo o decurso das nossas vidas, porque é sempre incompleta, complexíssima e dificílima a consciência plena sobre as nossas escolhas.

Uma exigência legal para que a vontade seja reiterada múltiplas vezes, junto de médicos diferentes e com competências na área da(s) patologia(s) em apreço, parece-me uma resposta de bom senso, que dá garantias de segurança e conforto.

Há em cada avanço a possibilidade de um recuo. Ao contrário de algumas pessoas que, como eu, se posicionam a favor da despenalização da eutanásia, não desprezo por completo a questão da “rampa deslizante”. É verdade que, perante uma determinação legal, se pode abrir um sistema de precedências que culmine numa alteração da perceção pública sobre um tema, com mudanças civilizacionais associadas. Mas é também verdade que esse não tem sido o caso nos últimos grandes debates deste tipo: nem na lei do aborto, nem na lei do casamento entre pessoas do mesmo sexo, nem na lei da procriação medicamente assistida. Por isso é que a “rampa deslizante” se apresenta, na prática, como um falso argumento de terror e menos como um verdadeiro argumento a considerar.

Para além disso, a qualidade da legislação, a discussão política e técnica a que tem vindo a ser sujeita e a que continuará a ser sujeita em sede de debate na especialidade permite ter garantias sobre a introdução de uma possibilidade legal controlada, monitorizada e acompanhada.

A este propósito, importa lembrar que os deputados são os representantes dos portugueses e a eles cabe a defesa dos interesses dos eleitores, reafirmada nas eleições do último mês de outubro. Recusar a possibilidade de um referendo sobre direitos individuais é, neste caso, defender a Constituição e negar a tendência para o populismo.

Coloca-se, também, a questão da eutanásia como ato médico. É verdade que o Código Deontológico da Ordem dos Médicos necessitará de se reajustar perante a aprovação desta lei, como o fez em outras circunstâncias ao longo da história. Entendo que a profissão médica é uma expressão de serviço público que se devota à defesa e promoção da saúde, que é o mesmo que dizer, à defesa e promoção do bem estar e do bem viver, dos indivíduos e das populações.

Que os princípios do ato médico sejam defendidos, em nome de um património social e cultural de séculos, é legítimo e fundamental; que esses princípios sejam um obstáculo concreto às novas necessidades dos tempos, que surgem pela voz de pessoas com sofrimento real e doenças reais, que convocam os médicos ao seu auxílio nos momentos finais da vida, por lhes garantirem segurança, conforto e ausência de sofrimento, é inaceitável. O envolvimento dos médicos na eutanásia é uma garantia basilar de que o processo cumpre todos os critérios de rigor, decência e humanidade.

À parte disso, seria importante uma vontade real de ouvir os médicos: uma sondagem, tecnicamente simples, que abranja a maioria dos profissionais, permitirá ter, com certeza, uma noção da perspetiva destes profissionais sobre o assunto.

Aos que apresentam os cuidados paliativos como solução mirífica, impõe-se que no pós-debate aproveitem para entrar a sério na discussão sobre os cuidados de saúde, a falta de recursos da última década e os novos recursos para a nova década. Mais cuidados paliativos, uma melhor luta contra a distanásia, uma reconfiguração dos valores da ação médica para que se foque no doente e na sua autonomia: estas reformas de fundo, que são urgentes, em nada contrariam a possibilidade da eutanásia. Antes a reforçam e protegem.


Podes consultar aqui um artigo com outro ponto de vista sobre a morte medicamente assistida, no dia em que a Despenalização da Eutanásia é discutida e votada no Parlamento.

Índice

  • Pedro Ramos

    Pedro Ramos estuda medicina. Tem interesse nos temas da saúde, política e sociedade, e na forma como essas vertentes se relacionam. Nas horas vagas vê filmes, tira fotografias e escreve poemas.

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