The Circle: quando a realidade também é uma espécie de ficção

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The Circle / Netflix
THE CIRCLE

The Circle: quando a realidade também é uma espécie de ficção

The Circle, a nova aposta do Netflix, coloca 8 jogadores, fechados cada um no seu apartamento, em disputa por um lugar no top de popularidade. O facto de os concorrentes nunca verem para além das fotos de perfil e nunca falarem por outra via que não o texto escrito, transforma a série numa espécie de ensaio sobre os tempos em que vivemos e as relações que forjamos.

Idealizado como forma de trazer para o pequeno ecrã a vida real e quotidiana de pessoas como os telespectadores, os reality shows são um exemplo de transgressão entre o que é ficção ou realidade. Apesar de prometerem a segunda, são produções televisivas que não deixam de poder ser manipuladas — quer por indução de comportamentos, quer pela edição e os enquadramentos — e facilmente nos deixam no limbo sem saber no que acreditar ao certo. The Circle US é a mais recente aposta do Netflix neste formato e o seu conceito leva esta dúvida para outro nível.

Apresentando-se como uma “Social Media Competition”, este reality show coloca 8 jogadores, fechados cada um no seu apartamento, em disputa por um lugar no top de popularidade e 100 mil dólares, tendo que sistematicamente classificar os colegas da 1ª à 7ª posição. A mecânica assemelha-se à do 1º episódio da 3ª temporada de Black Mirror, “Nosedive”, mas a sua exploração deixa pistas que vão para além do episódio. O facto de os concorrentes nunca verem para além das fotos de perfil e nunca falarem por outra via que não o texto escrito, enviado através da aplicação The Circle, transforma a série numa espécie de ensaio sobre os tempos em que vivemos e as relações que forjamos. A disputa pela popularidade, a impossibilidade de uma comunicação plena, e a facilidade com que se assumem personagens são alguns dos condimentos que incitam a reflexão. Em breves pontos:

1. Nem realidade nem ficção

Antes de escrever este ponto devo confessar que vi a série sem qualquer contexto e até meio da visualização pensava estar perante uma série ao estilo Black Mirror em que actores desempenhavam o papel de concorrentes, num cast perfeito que representava equitativamente estereótipos dominantes. Joey, o italo-americano engatatão, Shubham, o nerd de ascendência asiática, Alana, a modelo despassarada, Sammie, a mulher independente, Chris, o drama queen… por aí. Foi quando descobri que as pessoas eram reais e que (cá está, supostamente) nada da série era ficcionado, que a experiência ganhou contornos ainda mais intrigantes.

Ainda assim, depois de saber que se tratavam de pessoas reais, as interações entre todos os concorrentes não deixa de parecer uma ficção. A criação dos perfis nas redes sociais e as personas interpretadas por cada um são uma alusão perfeita à ideia de máscara social de Goffman. Por muito que os concorrentes, como Joey, preguem estar a ser 100% genuínos, vemos uma espécie de excesso de coerência que dificilmente representa qualquer comum mortal.

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2. Fish the Catfish

Um dos elementos mais interessantes neste reality show foi a presença alarmante de catfish — isto é, de pessoas que durante o jogo se fizeram passar por outras pessoas — em alguns casos, sem que ninguém desconfiasse. Essa interpretação, ao longo dos 11 episódios da série, deve servir-nos de alerta para a facilidade com que alguém se pode fazer passar por outrém online e como essa farsa dificilmente é desmontada. Ao longo da série paira a desconfiança sobre que perfis são ou não reais mas as suspeitas nunca passam daí e muitas delas são infundadas. Mesmo nos pormenores mais específicos, como uma conversa sobre menstruação, percebemos a facilidade com que respostas genéricas chegam para manter a face de um perfil falso.

Esta questão é particularmente interessante, porque se relaciona de modo muito próximo com a anteriormente referida. Como se a incoerência própria de cada um fosse neste contexto — como no contexto das redes sociais — um símbolo de falsidade, quando na verdade pode ser apenas uma demonstração de dúvida, incerteza, ou espontaneidade.

3. I LOVE YOU BRO!

Um dos pontos de que se fala acerca da série prende-se com as relações estabelecidas entre alguns dos concorrentes e com o final em que todos ficaram estranhamente amigos. Ao contrário do habitual nos programas deste estilo, onde o que dá canal são as intrigas, discussões ou as cenas mais eróticas, neste reality show os concorrentes não estão juntos e estão por isso fisicamente impossibilitados de interações desse género. No seu lugar, cria-se uma estranha cumplicidade entre eles. Estranha porque se por um lado sempre é mais simpático ver pessoas a dar-se bem do que a discutir por futilidades absurdas, por outro, da perspectiva do espectadores percebermos que muitas das interações são jogadas e outras tantas são interpretadas de forma completamente diferente por cada concorrente. A ideia com que se fica é a de que, como dizia Bill, um dos concorrentes tardios do programa, estão todos a ser demasiado simpáticos e a tentar agradar aos restantes, mais do que a ser verdadeiros. Os sentimentos parecem ser altamente empolados, tal como a facilidade com que Joey diz I LOVE YOU BRO ou morreria pelo Shubham.

O cúmulo sucede quando essas relações se estabelecem entre pessoas reais e perfis falsos, ou mesmo exclusivamente entre perfis falsos. Nesse caso, e por muito que no final todos se abracem, o nível de interpretação de um certo papel social é gritante, e por muito que termine com sorrisos e abraços, a sinceridade dos sentimentos que são verbalizados é no mínimo duvidosa.

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No final do dia a série não deixa de ser um concurso, e uma luta por 100 mil euros, pelo que qualquer ideia expressa não é um julgamento sobre os seus concorrentes que se limitaram a jogar o jogo. Nesse prisma a série até se revela surpreendentemente interessante e divertida, sendo quase impossível não simpatizar com todos os concorrentes. De resto, o formato escolhido pelo Netflix — que comprou os direitos de produção da série original, britânica — que reduz todo o programa a 11 episódios, ao contrário do número infinito a que estamos habituados em Portugal evita a saturação. Nota final para a edição, bem como para a voz-off de Michelle Buteau, um elemento essencial no equilíbrio global do programa.

Depois de a versão norte-americana ser um sucesso, a Netflix já está a preparar uma versão brasileira e outra francesa. Com a tendência da televisão portuguesa para abraçar projectos do género, não seria de admirar se uma das primeiras produções nacionais para a plataforma de streaming pudesse ser neste formato — seria, no mínimo, um desvio interessante ao padrão dos reality shows a que estamos habituados e uma forma interessante de espoletar a discussão sobre as redes sociais, de um modo geral.

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  • João Gabriel Ribeiro

    O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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