A mente em tempos de crise: o impacto do confinamento

Taylor Young via Unsplash

A mente em tempos de crise: o impacto do confinamento

Não descuremos a variedade de danos que o SARS-Cov-2 pode causar, dos mais diretos, aos mais obscuros.

As ruas parecem mais desertas. Fico mais tranquilo, vejo uma resposta ao apelo das instituições de saúde, que se têm debatido, incessantemente, por combater a crise vigente. Não deixo de me sentir, porém, inquieto. Pelo que se avizinha. Os males de uma pandemia têm muitas faces. Não descuremos a variedade de danos que o SARS-Cov-2 pode causar, dos mais diretos, aos mais obscuros. Aqueles que, aproveitando o esforço hercúleo do SNS, que se reorganiza a uma velocidade contrarrelógio, se instalam por entre as sombras. Podemos falar de patologias orgânicas ou recessão económica. Hoje, inquieto-me pelo estado da saúde mental. Se o isolamento social e as quarentenas são inquestionavelmente eficazes na contenção e mitigação, são também uma ameaça à robustez do pensamento, à resiliência do estado de espírito.

Numa das minhas incursões pela literatura, que atualiza com rigor o conhecimento da infeção, deparei-me com uma publicação da prestigiada revista Lancet, do presente ano, que reviu estudos que quiseram medir o impacto psicológico associado a um confinamento. Para esse efeito, compararam-se grupos sujeitos a quarentenas, com respetivos controlos, em epidemias anteriores (nomeadamente, as de 2009 e 2010, do vírus influenza H1N1). Inspiro-me nesses estudos, agora, para desenhar um guia de sobrevivência mental.

Para medir o impacto psicológico, a primeira ação exigida será reconhecer o desafio, para otimizar a sua gestão. É fulcral sermos realistas, mas não alarmistas. A contenção do pânico recai no uso ponderado das palavras. Importa, por exemplo, elencar que a maioria de nós se encontra em isolamento. Uma verdadeira quarenta implica uma restrição obrigatória dos contactos com um caso de COVID-19, para que se monitorize sintomas, e se evite a propagação da infeção. Estar em isolamento social, por seu lado, implica restringir saídas de casa ao estritamente necessário, de modo a criar um cordão que separe os indivíduos doentes dos saudáveis. Em ambos os casos, o burden psicológico pode ser devastador. Falamos de diversos distúrbios que podem emergir ou intensificar, desde alterações de humor, perturbações de ansiedade, do sono, de exaustão, obsessões e compulsões, ou sintomas de stress pós-traumático. Sim, estar isolado cria verdadeiros traumas. Parece básico. Mas o que surpreende são o quão insidiosos estes danos podem ser. Falamos, na maioria dos casos, num período de instalação de semanas a meses. Mas a mente ilude-se, pensa resistir ad eternum. E, afinal, as consequências podem ser sentidas somente ao fim de alguns anos. É o caso das perturbações de dependência alcoólica e de outras substâncias de abuso.

Depois de assumirmos o problema, é fulcral que retornemos à sua origem, identifiquemos as causas. Mais um exercício de aparente vulgaridade, mas de importância vital. Porque ficamos tristes, irritados, angustiados, apáticos? A perda da sensação de liberdade, essa força tatuada no nosso sistema identitário, é um candidato provável à resposta mais adequada. Mas não há respostas erradas. A perda de contacto com quem mais gostamos, de rendimentos e poder de compra, a gestão deficitária de expectativas, mediante o parco saber sobre a pandemia, e a própria monotonia, que suga a cor aos dias, contribuem para esta complexa equação.

Uma vez identificadas as causas, procuremos os triggers: os fatores que podem precipitar ou agravar os danos. As publicações analisadas são elucidativas, subdividindo estes preditores em 3 grupos: pré, durante e o pós-quarentena. Um estudo feito com criadores de cavalos, obrigados ao isolamento em contexto da epidemia do influenza equino — que se pode transmitir para o humano — identificou o sexo feminino, os 16-24 anos e o baixo nível educacional como fatores de risco pré-quarentena para impacto psicológico adverso. Contudo, salienta-se que estes preditores não reúnem consenso na restante literatura. Já a história prévia de doença mental tem sido um preditor pré-quarentena consistentemente associado a risco acrescido. Em termos de preditores durante a quarentena, a insuficiência de bens essenciais e de informação fidedigna foram associados ao aparecimento de perturbações ansiosas, 4-6 meses após o fim desta. E no pós-quarentena enfatiza-se o stress das finanças familiares: associados, uma vez mais, a distúrbios de raiva e ansiedade. E o peso do estigma. Voltemo-nos, a esse propósito, para os profissionais de saúde. Os estudos são peremptórios a identificá-los como um subgrupo de risco. Porque, findadas as quarentenas, os comportamentos de evicção (de espaços públicos e contacto humano) são um dos desafios mais preponderantes a solucionar. E os profissionais de saúde parecem ser os que mais sofrem disso. O medo de infetar, para além do razoável, e do que o outro possa pensar provocam taxas de abstenção no trabalho consideráveis (alguns estudos apontam para desistência laboral até 3 anos). Afinal, os gigantes também caem. Destroços da guerra, que se contabilizam por muito tempo.

Portanto, assumimos o desafio, identificámos causas, catalogámos fatores de agravamento. Refletimos, para chegarmos a uma estratégia, com a qual nos possamos comprometer. Estrategicamente, é fundamental validar o que sentimos: parece fácil, mas não o é. Implica um confronto com aquilo que desejaríamos esconder, num qualquer canto da nossa mente. Falar sobre o que nos vai na alma é simultaneamente um ato arrumação mental e de libertação do ruído que corrói. Importa, também, sermos os nossos agentes motivacionais: lembrarmo-nos das razões que nos levaram a afastar de família e amigos. Para que os possamos reencontrar em segurança. Seguidamente, as agravantes supracitadas devem ser aliviadas. Paremos, então, os açambarcamentos desnecessários e mobilizemos os esforços de pesquisa para as fontes realmente credíveis. E no final, não perpetuemos estigmas. Sejamos tolerantes com todos: os saudáveis, os infetados, os zelosos, os menos cuidados. Porque esta é uma doença do coletivo, que não olha a critérios para escolher o alvo.

Quando a tempestade passar, alguns de nós vão estar bem. Mas alguns outros nem tanto. Mas sei que não nos vamos esquecer deles. Em tempos de crise, a mente soergue-se. Porque quando for necessário, vamo-nos lembrar do que nos eleva enquanto humanos: a capacidade de estender a mão, e impactar o outro.

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  • João Marques

    O João vive no Porto, onde trabalha, como médico. Nesse sentido, gosta de se debruçar em saúde mental. Mas medicinas à parte, escreve, também, sobre política e cinema. Acima de tudo, gosta de refletir sobre como estes constituem um reflexo da própria vida, e conseguem, por vezes, a heroica façanha de a reinventar.

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