Porque é que andamos a ter sonhos estranhos ultimamente

Imagem Rita Pinto/Shifter

Porque é que andamos a ter sonhos estranhos ultimamente

As respostas são pouco concretas, mas parecem existir pelo menos três pontos comuns a praticamente toda a população mundial que poderão estar a influenciar este fenómeno: vivemos um momento de ansiedade global, alterámos de forma considerável as nossas rotinas, e quem está em isolamento em casa está provavelmente a dormir mais.

Se andas a ter sonhos especialmente aleatórios, vívidos e com narrativas estranhas nos últimos tempos, não estás sozinho. O tema tem sido recorrente no Twitter, há marcas a falar disso, imprensa a tentar explicar o fenómeno, blogues dedicados a estudos sobre o tema, e as pesquisas por “sonhos estranhos” no Google andam a ter picos também eles anormais em vários países do mundo.

O assunto tem sido tão amplamente discutido que há vários especialistas com teorias e opiniões sobre o que pode estar na origem do fenómeno quase comunitário. Fala-se em sonhos mais intensos do que o habitual, e que conseguimos lembrar com mais pormenor que o costume. As respostas são pouco concretas, mas parecem existir pelo menos três pontos comuns a praticamente toda a população mundial que estarão a influenciar este fenómeno: vivemos um momento de ansiedade global, alterámos de forma considerável as nossas rotinas, e quem está em isolamento em casa está provavelmente a dormir mais.

De acordo com o psicanalista e antigo presidente da Associação Internacional para o Estudo dos Sonhos, Robert Bosnak, isto é mesmo um fenómeno global. Entrevistado pela revista InStyle refere: “Actualmente trabalho nos EUA, na Austrália, na Índia, na China e no Japão. A história é a mesma em todo o lado.” 

A verdade é que, se a própria realidade parece um universo paralelo que poderia muito bem ser o palco de um pesadelo sci-fi, como não há esse sentimento de passar para o nosso inconsciente enquanto dormimos? Para as populações que estão indefinidamente confinadas em suas casas, a contagem do tempo parece já nem ser feita pelos movimentos regulares do sol, a realidade surreal de cidades vazias espelha os cenários áridos dos sonhos, há uma praga invisível que deixa as pessoas gravemente doentes, tocar no que quer que seja é proibido. Mais do que os filmes aos quais é constantemente comparado, o universo do Covid-19 tem os mesmos ingredientes de um sonho daqueles em que o tempo é um conceito híbrido e não sabemos quando vai acabar.

Os sonhos, o sono e a ansiedade

Bosnak explica que existem cinco fases do sono, e que os sonhos costumam ocorrer na chamada fase REM (Rapid Eye Movement, ou movimento rápido dos olhos). Um estudo de 2010 revela que sonhos vívidos, bizarros e emocionalmente intensos (os sonhos que costumamos lembrar ao acordar) estão directamente ligados a partes da amígdala e do hipocampo. Bosnak partilha dessa teoria, acrescentando que isto de nos lembrarmos do que sonhámos “tem a ver com uma forte activação do sistema límbico que é responsável pelo medo, raiva e ansiedade”, que ocorre predominantemente na amígdala.

Os pesadelos são um sintoma comum do trauma e, de acordo com um relatório da Nature and Science of Sleep, de 2018, são considerados a “marca registada do transtorno de stress pós-traumático (SPT).” Bosnak explica que existem dois tipos de pesadelos: “os pesadelos SPT”, que tendem a ser recorrentes e não mudam muito de conteúdo, e os que chama de “pesadelos digestivos”, que podem mudar muito de noite para noite, porque são a forma que o nosso cérebro tem de digerir o nosso trauma e ansiedade. Ainda que seja muito cedo para falar em trauma associado à pandemia, as nossas experiências diárias mais intensas têm uma ligação inerente aos nossos ciclos do sono, e consequentemente, àquilo que sonhamos. Aliás, menciona outro estudo de 2011, que revela que a redução do nosso sono REM (onde a maioria dos sonhos acontece) afecta a nossa capacidade para entender emoções complexas no dia-a-dia.

Bosnak diz, no entanto, que é impossível saber se as pessoas estão realmente a sonhar mais e mais vívido do que o habitual, ou se estão só a ter um sono mais leve, o que também pode resultar na lembrança dos sonhos com mais regularidade.

O senso comum (e o Twitter) levam-nos ainda a acreditar que este fenómeno poderá estar associado ao trauma do contexto, pode ser uma reação à ansiedade do período que vivemos, ou ao isolamento especificamente. As mudanças na rotina também podem estimular a lembrança dos sonhos. “Quando a vida quando estamos acordados também é mais vívida, o mesmo acontece com a vida dos sonhos”, refere Rubin Naiman, psicólogo e professor assistente de medicina e especialista em sono e sonhos da Universidade do Arizona, ao Los Angeles Times. “Os meus pacientes costumam ter mais sonhos em momentos como este.” 

Para Martha Crawford, uma assistente social que criou um blogue para recolher sonhos sobre a presidência de Trump (yep), e começou a fazer o mesmo para a pandemia actual, na tentativa de encontrar explicações e fios condutores (sobre ambos os fenómenos), “nós estamos a lidar com um aglomerado muito intenso de ansiedades primitivas e existenciais actualmente – medo da perda de entes queridos, medo da própria morte, medo do sofrimento, medo de ver outras pessoas sofrerem, perda de contacto com pessoas importantes”. “Estamos a tentar conter-nos durante o dia e à noite, [sonhar] é a maneira que temos de libertar esse mecanismo de repressão e começar a processar como estamos realmente a entender essas ansiedades”, diz.

Catalogar sonhos para análise

Além de Crowford, outras pessoas iniciaram projectos de catalogar os sonhos da pandemia que, aparentemente, teve efeitos de longo alcance no nosso subconsciente colectivo. Joe Dobkin, um produtor de áudio de Nova Iorque, começou a reunir sonhos num podcast chamado “QuaranDreams”, e Erin Gravley criou o blogue I Dream of Covid, uma espécie de coleção surrealista de sonhos enviados por leitores de todo o mundo. O site foi inspirado no livro de Charlotte Beradt,The Third Reich of Dreams, que analisou os sonhos das pessoas que viveram em primeira mão a Alemanha Nazi e o reinado de Hitler. “O que quer que estivesse a acontecer no coletivo, a nível social, estava afundado no inconsciente individual e a ser cuspido de volta em certos arquétipos”, diz Gravley. Na época, eram comuns os sonhos em que o sonhador tinha alguém a controlar a sua mente ou corpo, em que tentava resistir a restrições ou em que perdia prazeres básicos – tudo o que reflectia diretamente como era a vida sob o regime autoritário. “Isso [a semelhança] impressionou-me realmente, porque sonhar sempre me pareceu algo tão pessoal”, diz.

No final, Gravley espera acumular sonhos suficientes da era do Covid-19 para que comecem a surgir padrões. Na sua recolha, já existem alguns: pessoas que associam o abraço à ameaça ou ao perigo, e os sonhos com comida também têm surgido bastante, o que pode ser explicado com os fenómenos de açambarcamento a que assistimos em todo o mundo, ou porque as pessoas podem estar preocupadas em não ter suficiente.

Seja como for, para os cientistas do sono, é um momento hiper-oportuno para recolher o maior número de conteúdo de sonhos para análise. Será a geografia e gravidade do surto outro factor de influência no que sonhamos? Será que quem vive em Bergamo, Itália, sonha mais que um habitante de Samoa (ilha do Pacífico Sul sem casos registados)? Será, por exemplo, que os trabalhadores da área da saúde, na linha da frente no combate ao Covid-19 e que estão sob um nível de stress superior à maioria, sonha de forma diferente de um, imaginemos, trabalhador de call center em teletrabalho?

Embora o fenómeno dos sonhos vívidos e dos padrões colectivos dos sonhos seja uma particularidade fascinante do momento actual, há outras razões para prestarmos atenção aos nossos sonhos. “As pessoas devem perceber que o medo que sentimos sente-se directamente no corpo e é entendido como fadiga, tristeza e luto, mas o mais perigoso é que provoca raiva e fúria”, adverte Bosnak. “Devemos ter cuidado com isso, especialmente se estivermos isolados num local com outras pessoas, para não começarmos a demonstrar essa raiva.” Bosnak cita o aumento da violência doméstica como evidência dessa raiva encarnada que muitos estarão a sentir de momento. O psicanalista sugere que conversemos sobre os nossos sonhos com outras pessoas – sem tentarmos entendê-los, só partilhá-los – como uma forma de os processarmos e reconhecermos a tal raiva que pode estar por escondida por detrás de sentimentos mais palpáveis ​​como a tristeza ou ansiedade.

Ainda é muito cedo para saber o que os nossos sonhos dirão sobre este momento da história, mas registá-los – seja através de um dos projectos acima, seja nas redes sociais para os partilharmos e podermos processar em conjunto, seja num diário num método mais individual – pode servir de documento futuro e de análise sobre as formas como o isolamento social e o medo da pandemia estão a moldar o nosso mundo. E eventualmente, talvez, voltemos a dormir em paz – para quem luta para ter uma boa noite de sono ou tem pesadelos regulares nesta altura, é recomendado manter um horário de sono consistente e uma rotina na hora de dormir ou fazer uma sesta curta de 30 minutos a meio do dia.

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  • Rita Pinto

    A Rita Pinto é Editora-Chefe do Shifter. Estudou Jornalismo, Comunicação, Televisão e Cinema e está no Shifter desde o primeiro dia - passou pela SIC, pela Austrália, mas nunca se foi embora de verdade. Ajuda a pôr os pontos nos is e escreve sobre o mundo, sobretudo cultura e política.

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