Mota Jr: a morte do jovem e a vida do rapper

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Screenshot via YouTube

Mota Jr: a morte do jovem e a vida do rapper

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Mais do que um arremessar de culpas, justificações e moralismos, a morte de David Mota (Mota Jr) convida-nos a um olhar mais humano sobre uma vida que nos habituámos a catalogar.

Para muitos um ícone, para tantos outros um perfeito desconhecido sobre o qual ouviram agora falar primeira vez. David Mota, de 28 anos, mais conhecido no mundo da música como Mota Jr., teve uma ascensão meteórica mas uma carreira curta que terminou num crime com contornos macabros e ainda por desvendar. Depois de cerca de dois meses de desaparecimento, o corpo do jovem foi encontrado já em avançada fase de decomposição junto de alguns dos seus pertences que permitiram facilmente determinar a sua identidade. Mas, para recapitular a sua história, façamo-lo desde o início.

Apesar de a sua carreira ter começado um pouco antes, a ascensão de Mota Jr. começou com “Ca Bu Fla Ma Nau”, faixa que partilhou com Piruka em 2016 e que se tornou num dos maiores sucessos do YouTube nacional. Com metade em português, protagonizada por Piruka, e metade em crioulo, interpretada pelo próprio Mota Jr., o single e videoclipe da faixa foram o primeiro grande sucesso do rapper e o início épico de uma aventura que conheceria os extremos: dos estádios cheios na Guiné ou em Cabo Verde, até às polémicas nos directos de Instagram. O tema somou milhões de visualizações logo nos primeiros meses e foi também o início da primeira polémica, ou como se diz na gíria do rap, o primeiro beef, a marcar a carreira do rapper. Mota Jr. entrou em divergência com Piruka, que originalmente carregou o vídeo para o YouTube, sobre os valores a pagar pelas visualizações que a música ia atingindo, e a sua disputa tornou-se numa nota típica das suas aparições públicas. 

Contudo, a frustração que revelava pelas alegadas dívidas de Piruka não abrandava o prego a fundo na sua carreira absolutamente impulsionada pelo single. Em 2017, Mota Jr. lançou Pega e Discarrega 2, uma continuação do trabalho que havia começado em 2014, e colheu os frutos de todo o clout. Mota Jr., com o habitual preceito dos rappers, representava a sua zona, a Baixada, e o seu estatuto nesse contexto ergueu-se ao ponto de nas suas descrições das redes sociais vermos frequentemente o cognome Pai da Baixada. De São Marcos, Sintra, o rapper projectava mais do que a sua música, um estilo de vida geralmente marginalizado, a história de um português criado num efervescente caldeirão cultural. Um branco a cantar crioulo, vindo do gueto, fazendo da praxis do gueto a sua saída, David Mota projectava o sonho como tantos outros artistas o fizeram noutros estilos e com outras abordagens. Sem juízos morais, facilmente percebemos a riqueza do seu relato – latente nos paradoxos que se tornam lei na margem nas sociedades contemporâneas, nos bairros considerados perigosos mesmo à porta das metrópoles desenvolvidas.  

Presenti n’ta vivi
Pamo nha passado foi duro
Criado dentu di sucurro
tipo ki staba mi so contra mundo
Além na misson
focado na djias pa stan fitchi nha futuro
Climas pesado ki poe ma marado e ao memo tempo ki poe ma maduro

Mota Jr. rimava sem pudor sobre drogas, violência, crime, muitas vezes numa toada apologética que o empurrava para as margens do panorama cultural. Contudo, isso não o impedia de ter uma legião de fãs e de o tornar uma personagem de relevo nas redes sociais. No Instagram, por exemplo, somava 180 mil seguidores, mais do dobro de Sam The Kid, se quisermos usar um dos maiores ícones do rap tuga para efeitos de comparação. O seu sucesso fazia-se sentir em Portugal e não só, além fronteiras, especialmente no continente africano que se identificava na língua da sua expressão, tal como outros fenómenos vindos da zona de Sintra, como a Força Suprema. Os seus fãs faziam-se ouvir na estrada, e no seguimento fiel que faziam das suas redes sociais, e o seu nome começava a ganhar o respeito dos pares no rap.

Screenshot do Instagram do NGA

Para além do conteúdo relacionado com as suas músicas, Mota Jr. era um utilizador ávido das redes sociais no modo directo. Era nesse registo que ia interagindo com os seus seguidores, mostrando a sua realidade e mandando dicas, quase sempre de modo abstracto, para quem, dizia, o queria ver mal. Nas últimas publicações de Instagram, essa temática é recorrente, paralelamente aos anúncios que ia fazendo de Pega e Discarrega 3, o trabalho que marcaria 2020 e que tinha como single, já apresentado, “Vira Casacas”. 

Carregado para o YouTube a 1 de Março de 2020, este foi o último trabalho do rapper a ver a luz do dia, e ecoava uma mensagem em que Mota tocava frequentemente, a de que alguém de quem fora próximo traíra essa proximidade – em diversas publicações lê-se “comigo só se falha uma vez”, numa mensagem críptica e sem um destinatário explícito. De resto, o tom provocatório, as ameaças e o espírito de perseguição iminente eram uma constante na narrativa de que Mota Jr. era personagem principal. Ainda assim nada fazia prever que no dia 15 de Março, David fosse raptado à porta de sua casa numa história que até agora tem tanto de surpreendente como de misterioso. 

Depois da notícia do desaparecimento, não tardaram a surgir nas redes sociais dezenas de explicações. Os mais cépticos diziam que provavelmente estaria sem rede, a tomar um tempo, ou até que apareceria mais tarde em Cabo Verde, onde tinha uma grande legião de fãs e prometia voltar na sua última publicação de Instagram. Os seus amigos garantiam em directo para aquela rede social que ficariam de vigia até ao último momento,  que vingariam o que quer que tivesse acontecido e para que parassem de supor que isto era uma brincadeira do David.

A história, com pouca atenção mediática, ia crescendo e ganhando camadas, umas reais e outras especulativas, entre a legião de fãs que o acompanhava; o testemunho mais fidedigno surgiu um mês depois pela voz da sua mãe no programa da tarde da TVI. A mãe de David explicou que o filho tinha passado a tarde com um amigo até ter descido à porta do prédio, local onde desaparecera. Filomena falou pela primeira vez sobre a presença de uma rapariga no local do crime e adensou as conspirações que se iam formando online. Entre os que inferiam o seu envolvimento e os que tentavam criar histórias plausíveis da pouca informação disponível. Para além do rapto, Filomena falou sobre um assalto no dia seguinte em que todos os valores do rapper – que frequentemente se via com colares e anéis dourados – tinham sido levados, alegando que quem o fez saberia o que estava a fazer. 

Até agora pouco mais se sabe. O corpo foi encontrado em avançado estado de decomposição em local ermo, a mais de 50 km do sítio onde fora visto com vida pela última vez. A bolsa e alguns pertences terão sido o que permitiu à polícia identificar a identidade, mas sobre os suspeitos pouco sabe ou, pelo menos, pouco se diz. Na internet circulam teorias onde se identificam potenciais suspeitos, num decurso natural das teorias da conspiração como vemos do outro lado do Atlântico em reacção à morte de artistas famosos, especialmente quando também são mediaticamente marginais. 

Segundo avança a imprensa nacional, a Polícia Judiciária estará agora a investigar o caso, tendo na presença da tal amiga um dos indícios a partir do qual poderá desvendar toda a história. O caso já está por toda a parte e chegou até, por exemplo, à comentadora do Você na TV, que o aproveitou para ironizar as referências críticas e ofensivas do rapper sobre a polícia. A ostentação de dinheiro, carros e drogas eram uma constante no percurso de Mota Jr. e são agora argumentos de um julgamento moral que de muitíssimo pouco vale. Este é um caso peculiar no panorama português, comparável por exemplo com a morte do controverso XXXTentacion. Sem dados concretos, suspeitos ou condenados, é um último capítulo negro mas realista de uma história que se passa num bairro e se deixa moldar por ele, uma história sobre aqueles que geralmente não ficam na versão oficial da história.  

Mais do que um arremessar de culpas, justificações e moralismos, a morte de David Mota convida-nos a um olhar mais humano sobre uma vida que nos habituámos a catalogar. Se cada homem é o intervalo entre o que quer ser e os outros fazem de si, a dimensão social de uma Lisboa periférica e precária, berço de sonhos de vidas fartas e opulentas que crescem à margem de todo o aparato, lembram-nos da falta de coesão de uma cultura espelho da falta de coesão de uma sociedade que sempre se habituou a ignorar aqueles de que moralmente discorda. Mota Jr., cantor com mais de 30 milhões de visualizações acumuladas no YouTube, desapareceu há mais de dois meses mas os alarmes mediáticos soaram apenas ao encontrar do seu corpo.

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  • João Gabriel Ribeiro

    O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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