Netflix no mercado nacional: consolação ou consolidação?

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Foto de Isaac Quesada via Unsplash

Netflix no mercado nacional: consolação ou consolidação?

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O Netflix e o ICA lançaram um concurso de 155 mil euros para ideias. Mas se a perspectiva de internacionalização das criações portuguesas é uma esperança que todos no sector carregam, é preciso não perder o discernimento.

Depois de produzir conteúdos originais em todo o mundo, o Netflix reservou agora 155 mil euros para um concurso de ideias e argumentos portugueses sem o compromisso de os distribuir mundialmente através da sua plataforma de streaming. Juntamente com o Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), o Netflix procura premiar 10 autores nacionais, com 25 mil euros atribuídos a cinco dos participantes.

“Os argumentistas e autores residentes em Portugal poderão enviar os seus projetos até ao dia 1 de junho. Um painel de jurados, composto por especialistas do setor, avaliará as propostas. Entre os projetos apresentados o júri irá selecionar os dez melhores trabalhos”, lê-se numa nota de imprensa do ICA. De acordo com o regulamento do concurso, são procuradas ideias para produções inéditas, que não tenham sido ainda gravadas, para séries de documentário ou ficção. Podem participar projectos em co-autoria até cinco pessoas.

Serão seleccionadas 10 candidaturas entre as submetidas, que serão depois reduzidas a cinco: quatro de ficção e um documentário. As cinco melhores irão receber 25 mil euros cada, as outras cinco 6 mil. O júri, que anunciará os resultados a 30 de Julho, é composto por Verónica Fernández, directora de conteúdos da Netflix para Espanha e Portugal, Luís Proença, adjunto de comunicação da Fundação Calouste Gulbenkian, o escritor Possidónio Cachapa, a jornalista Isabel Lucas e o realizador Jorge Paixão da Costa.

Espanha aqui tão perto

Esta colaboração entre o ICA e o Netflix é o primeiro investimento do gigante do streaming norte-americano em Portugal. A estratégia do Netflix tem passado por agregar produções locais e transformá-las em êxitos globais; a empresa conseguiu fazê-lo, por exemplo, em Espanha.

Do país vizinho chegaram êxitos como La Casa de Papel. Criada por Álex Pina para o canal de televisão espanhol Antena 3, esta produção espanhola foi reeditada para o Netflix, que tem assegurado a continuidade da série a partir da terceira temporada. Com quatro temporadas já disponíveis e mais duas a caminho, um Emmy para melhor série dramática em 2018 e um contrato que assegura a exclusividade de Pina para com o Netflix, La Casa de Papel é um sucesso em países como Portugal, França, Itália, Brasil, Chile e Argentina – é a produção de língua não inglesa mais vista em todo o mundo na plataforma. O Netflix não revelou números; apenas que quando em 2018 renovou La Casa de Papel com novos episódios aumentou consideravelmente o orçamento da série, o que, segundo a Variety, terá feito da terceira temporada de La Casa de Papel a série espanhola mais cara por episódio de sempre.

O Netflix procura êxitos que chamem novos assinantes e que possam ser exportados globalmente; como é exemplo também White Lines, a nova criação de Álex Pina que conta com o premiado actor português Nuno Lopes, Elite, também de Espanha, ou ainda 3%, uma produção distópica que nos chega do Brasil.

Um mercado pequeno e novo

Portugal é um mercado pequeno na economia global e surge muitas vezes agregado estrategicamente a Espanha como “mercado ibérico”. A própria ‘Netflix Portugal’ responde ao braço espanhol – aliás, Verónica Fernández, que integra o júri deste concurso do Netflix e do ICA, dirige a partir de Espanha os conteúdos do Netflix para toda a Península Ibérica.

Mesmo a ‘HBO Portugal’ está agregada a Espanha; talvez por isso, as primeiras séries portuguesas a integrar o catálogo de streaming da HBO Portugal tenham sido produções luso-galegas, nomeadamente Auga Seca, de 2019, e Vidago Palace, de 2017, ambas transmitidas por cá pela RTP. Estas séries não são as produções originais que o Netflix procura, mas são uma porta de entrada para Portugal. De resto, na HBO Portugal já podemos encontrar o telefilme A Herdade, de Tiago Guedes, e filmes Sangue do Meu Sangue, de João Canijo, Tabu ou Aquele Querido Mês de Agosto, de Miguel Gomes, ou Cartas de Guerra, de Ivo Ferreira. No Netflix, o especial de comédia de Salvador Martinha é o único conteúdo português disponível.

Financiar argumentistas, não produções

Sobre o futuro do Netflix e de Portugal, pouco se sabe – mas a expectativa é da ordem de grandeza do apoio agora anunciado. Até agora a maior aposta em Portugal da empresa norte-americana, que consumou lucros de 709 milhões de dólares entre Janeiro e Março e e que tem 182 milhões de assinantes por todo o mundo, foi um call center.

No mesmo período, já durante a pandemia, Netflix anunciou um fundo de 100 milhões de dólares para apoiar profissionais do audiovisual que ficaram sem emprego; do que se soube da distribuição geográfica desse bolo, 13,8 milhões de euros foram distribuídos como fundo de emergência em países como Espanha, Itália, França, Reino Unido, entre outros. Mas em resposta à Lusa, a responsável espanhola não adiantou a extensão do apoio a Portugal.

Os 155 mil destinados a Portugal surgem noutro âmbito – concurso para estimular a produção de conteúdo original para a plataforma. Neste particular, parecem uma fatia muito pequena dos milhões que movem o Netflix, mas a explicação pode estar no facto de não se procurarem produtos finais mas antes ideias. Segundo o regulamento, “a seu exclusivo critério”, o Netflix “pode ter a iniciativa de continuar a apoiar um ou alguns dos 5 melhores projetos, sem assumir nenhuma obrigação presente a esse respeito, iniciando uma fase de negociação com os respetivos autores, nos termos contratuais a determinar pelas partes”. Caso não prossiga com o apoio a alguns dos projectos, “os autores mantêm todos os direitos sobre a obra”, lê-se. Por agora, será avaliados unicamente “a qualidade da ideia principal do argumento” e “a qualidade do desenvolvimento da escrita do referido argumento”.

Melhor que nada?

Mas se Portugal der à empresa boas ideias e, principalmente, ideias que satisfaçam o negócio da multinacional, esta poderá passar a olhar para o nosso país com outros olhos. Por agora, 155 mil é melhor que nada, mas é pouco. Um filme considerado de baixo custo não se faz nem de perto nem de longe esse orçamento; e cada episódio da nova temporada de Conta-me Como Foi custou à RTP entre 80 e 100 mil euros. Esses valores incluem tudo: argumento, produção, distribuição, marketing…

Nesse sentido, importa questionar e perspectivar mais um apoio que surge num momento de emergência e é descrito pelo Secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media, Nuno Artur Silva, como “(…) uma iniciativa especialmente relevante que, por via da escrita de argumento e do desenvolvimento de ideias por autores portugueses, representa um importante passo para a consolidação da ficção audiovisual e do documentário no nosso país.”. Ao olharmos ao total acumulado de investimentos da gigante norte-americana percebemos que o valor atribuído a Portugal é residual e revelador de um calculismo que não se pode traduzir directamente como um apoio; para além disso, a divisão de um valor já por si baixo, olhando à área em discussão, dificulta ainda mais a ideia de consolidação apresentada pelo Secretário de Estado.

Se a perspectiva de internacionalização das criações portuguesas é uma esperança que todos no sector carregam, é preciso não perder o discernimento, especialmente quando se articulam iniciativas deste género com órgãos públicos como o ICA, endossando altamente uma plataforma já por si detentora de uma grande reputação, e de uma grande fatia do mercado, beneficiando da sua capacidade de financiamento muito acima da média.

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