Renata Flores rima sobre “injustiças e desigualdades” do mundo em que vivemos, na língua dos Incas

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DR / Celia D Lucas - Cortesia da artista

Renata Flores rima sobre “injustiças e desigualdades” do mundo em que vivemos, na língua dos Incas

Renata Flores é peruana, vive na pequena cidade de Ayacucho, tem 19 anos, e encontra na música a forma de se reconectar com os seus antecessores e de alertar quem a ouve.

O New York Times chamou-lhe “a rainha peruana do rap Quechua” e dedicou-lhe um artigo extenso em que cruza referências de uma geração que começa a resgatar os idiomas que correm o risco de ser esquecidos através de géneros musicais mais popularizados. Renata Flores é peruana, vive na pequena cidade de Ayacucho, tem 19 anos, e encontra na música a forma de se reconectar com os seus antecessores e de alertar quem a ouve. Podemos não perceber o que diz quando a ouvimos, mas desde logo temos a certeza que a mensagem é forte e que vamos procurar uma tradução para melhor a entendermos. 

Num primeiro momento, pensar no rap como o género de eleição para preservar o Quechua, o idioma em que canta, pode parecer estranho – tanto para quem está de fora, como para quem se encontra dentro das comunidades. Numa troca de e-mails com seis horas de diferença, Renata explicou ao Shifter que a opção pelo género acabou por ser a mais natural quando começou a traçar um caminho que fosse além de covers: “Apercebi-me quando comecei a escrever, a compor e a procurar algum estilo em que me pudesse sentir confortável. As minhas letras eram muito extensas e tinha tantas coisas para dizer que acabei por ficar no rap”. Foi natural. 

DR / Celia D Lucas – Cortesia da artista

Antes de se lançar num caminho totalmente seu e que a faz dar passos para trás enquanto, ao mesmo tempo, olha o futuro, Renata começou por fazer covers de músicas pop traduzidas para Quechua. Primeiro com “The House of the Rising Sun”, dos The Animals, depois Michael Jackson e Alicia Keys, começou desta forma a tentar levar mais longe o Quechua e chegar aos jovens, como chegou a dizer em entrevista ao projeto “Mujeres que transforman”.

A participação no La Voz Kids, versão peruana do The Voice Kids, foi a oportunidade de projeção que fez com que mais pessoas a ouvissem. No casting, Renata, com apenas 14 anos, cantou “Fell in love with a boy”, de Joss Stone, em inglês, e uma das juradas – a única a não virar a cadeira – disse que não a sentiu ligada à música. Talvez cantar em Quechua fosse o elo de ligação que não muito mais tarde acabou por encontrar. Hoje, 5 anos mais tarde, essa ligação passa para o lado de cá em cada cover, mas sobretudo em cada original.

Cantar a mudança necessária, para que se ouça mais alto

Ouvir Flores, ou encontrá-la nos vídeos das suas músicas, é entrar num contexto muitas das vezes desconhecido deste lado do planeta. Na sua voz carrega o legado do seu povo, que combina naturalmente com um olhar que transparece vontade de fazer a diferença e determinação. “É muito valioso e importante resgatar não apenas o idioma, mas também uma forma de viver; a língua Quechua apoia e respeita a mãe terra”, diz-nos.

Pela palavra, mas também na dimensão visual da sua música – que, como refere, “é essencial que tenha um conteúdo que transmita a mensagem” – convoca histórias que não são suas, mas que sente como se fossem. Em “Tijeras” transmite força às mulheres vítimas de violência para que “não se calem”, em “Qam Hina” recorda que a sua avó não teve a possibilidade de terminar os estudos porque “era difícil a escola chegar a ela” e que essa realidade não se distancia muito da de algumas meninas que vivem nas povoações em zonas rurais do Perú. “Sei que sou jovem e dizem que não passei por tantas coisas ao ponto de poder contá-las ou escrever sobre elas, mas imagino-me nessas situações. Além disso, é difícil viver neste mundo e não nos darmos conta das injustiças e desigualdades”, explica. 

O incentivo à emancipação de mulheres que vivem em contextos mais opressivos vem de dentro e parte dos exemplos de força dentro da sua própria história. A mãe e as avós, que considera as suas “guias” e a fonte da sua inspiração, não só a apoiam desde o começo, como também a ajudam a consolidar a visão do que é, afinal, ser mulher. “Elas ensinam-me tantas coisas que me ajudam a entender o propósito de uma mulher na terra. É assim que me saem letras e muitas boas ideias para as transportar para as minhas canções”, conta-nos Renata, que também admite que “já passou por experiências machistas” ao longo do seu percurso. 

“Muitos pensam que só tens de ser uma cara bonita, corpo bonito e saber cantar — mas não é assim. Também podemos produzir, criar, compor, dançar, protestar, ser a líder de um projeto e chegar longe com os nossos projetos”, partilha com a força de quem ainda tem tempo e espaço para ir tentando mudar o mundo à sua volta. 

O resgate de um idioma milenar com ferramentas do agora

No artigo que escreveu para o New York Times, que também partiu de uma entrevista a Renata Flores, Julie Turkewitz, correspondente do jornal na cordilheira dos Andes, cita Liberato Kani, um dos mais conhecidos rappers Quechua, que diz que “há pessoas com críticas fortes que dizem ‘Isto é uma aberração’”. Kani continua, explicando que para essas pessoas, a língua milenar a que recorre para se expressar, e que é também a sua, deve permanecer “como áudio de fundo, no museu”. 

O Quechua, idioma que, como refere Turkewitz, é falado nos Andes por cerca de oito milhões de pessoas, pelo menos em cinco países, “espalhou-se pela América do Sul graças aos Incas, antes da chegada dos espanhóis”. Falá-lo em determinados contextos acaba por ser hoje um statement de resistência, como foi também o caso de Carmen Escalante, antropóloga que defendeu a sua tese de doutoramento neste idioma, em 2017.

Também Renata Flores recebeu algumas críticas quando começou a traduzir canções conhecidas em Quechua, mas ainda assim houve, e tem havido sempre, quem percebesse que esta também era uma forma válida de manter vivo um idioma que com o tempo pode correr o risco de ser extinguido. Quem o diz é a própria: “Muitas pessoas conseguiram entender que a nossa língua pode ser preservada adaptando-a aos dias de hoje, mas ainda assim há pessoas que não querem que a música Quechua e tradicional seja usada noutros géneros”.

“Temos que usá-lo, praticá-lo, cantá-lo, recitá-lo, falá-lo”, diz a rapper peruana sobre o Quechua. Fá-lo através das suas canções, mas também da série de vídeos que começou recentemente, nos quais desconstrói canções populares na atualidade e as traduz, enquanto explica o idioma ao mesmo tempo. A primeira música de “Aprende Quechua con Renata” foi “Bellyache”, de Billie Eilish. 

Sinto que tanto o idioma como a música tradicional também se podem adaptar a géneros atuais para, assim, mostrarem de um ângulo diferente a nossa cultura, fazendo ver que esta não está esquecida e pode estar num futuro”, partilha. Considera-se uma das vozes da sua cultura e tem consigo a missão de dar “visibilidade e recordar o que de bom os antepassados permitiram herdar”. Desta forma, consegue chegar a jovens peruanos falantes de Quechua, mas não só, e alertar para a construção de um futuro consciente.

A linguagem universal que conta estórias reais, e que não passam na TV

A realidade de muitas comunidades indígenas é, grande parte das vezes, desconhecida para quem vive longe delas. Por muito que algumas associações e organizações sem fins lucrativos, media independentes, antropólogos ou cineastas dentro dessas mesmas comunidades façam todos os dias um trabalho de desconstrução do estereótipo do “índio” cristalizado no cinema de Hollywood, a distância geográfica (ou a lógica dos algoritmos) muitas vezes faz com que esse reescrever nos vá escapando. 

Nas zonas rurais que melhor conhece, Renata Flores lamenta que não exista “uma educação adequada até ao momento”, mas partilha que a última vez que foi a uma escola “as crianças sabiam o que era o trap e o rap. Eu senti que sabiam muitas coisas, os tempos vão mudando com a tecnologia, e podemos pensar que são ignorantes mas não são, a única coisa que nos separa deles são as oportunidades. Eles têm saberes que nas zonas urbanas já não se praticam, como o cuidado com a natureza, que é muito importante”, conta.

DR / Marco Antonio Ayala – Cortesia da artista

Quando lhe perguntamos até onde gostava de levar o rap em Quechua, a resposta é tão certeira quanto as letras das suas músicas: “gostava de fazer sempre música, ensinar, ajudar as pessoas por intermédio dela, levar mais além a nossa língua e que finalmente seja valorizada e resgatada num futuro. Que todos os latinos de descendência indígena recordem e tenham a força dos seus antepassados para melhorarem, dia após dia”. “Também gostava que a nossa cultura milenar chegasse a todo o mundo; esta cultura que por muito tempo tem sido marginalizada e desprezada”, completa.

Isqun, o primeiro disco de Renata Flores, que traduzido significa Nove, sai ainda este ano, e estende a narrativa que já foi desvendando nos singles e nos vídeos que lançou até agora. As nove músicas que o compõem foram todas gravadas e produzidas por si na escola de música dos seus pais.  

Numa altura em que o resgate das tradições começou a passar por uma atualização da forma, com um conteúdo igualmente intemporal, e exemplos como o de Rosalía ganharam uma notoriedade à primeira vista não muito esperada, há cada vez mais jovens a abraçar o legado que inevitavelmente carregam consigo. Sem vergonha de o dizer alto, cantam-no para que chegue mais longe, enquanto encorajam outros jovens a ter orgulho nas suas raízes e não procurarem um caminho em que a música e a cultura se encontrem homogeneizadas. Renata Flores está ainda a dar os primeiros passos neste caminho tão seu, onde cabe tanta gente, mas a convicção com que fala do e pelo seu povo sublinha a certeza de que muito estará ainda por vir. 

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  • Carolina Franco

    Carolina Franco tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e está a completar mestrado em Antropologia - Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.

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