Sónia Guajajara: “A ancestralidade sempre ensinou que o sentido da vida é o coletivo”

Via Flickr (CC-BY-SA 2.0 / Katie Maehler)

Sónia Guajajara: “A ancestralidade sempre ensinou que o sentido da vida é o coletivo”

“A gente está num momento bem desafiador aqui no Brasil para os povos indígenas”, disse-nos em entrevista Sónia Guajajara, coordenadora do APIB e uma das ativistas mais reconhecidas na representação dos povos indígenas brasileiros.

As onze da manhã de Sónia eram quatro da tarde para mim. Quando atendeu a video-chamada, esboçou o sorriso que lhe é tão característico e perguntou como estavam as coisas por aqui. No Porto, a cidade que visitou em 2019 a propósito do Fórum do Futuro, o desconfinamento vai começando num ritmo mais ou menos acelerado e com ânsia de pisar a relva ou respirar maresia – sobretudo para quem vive em apartamentos. No Brasil vive-se a instabilidade de um barco que não tem quem o reme e, desgovernado, não sabe bem onde poderá atracar. Ainda assim, Sónia sorri.

No sábado em que nos encontrámos, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), organização por si gerida, dava conta de 758 indígenas infetados com Covid-19, 110 falecidos e um total de 53 povos atingidos. “Não é somente número! Cada corpo indígena tem uma encantaria ancestral. A cada indígena que é morto, morre parte da nossa história coletiva”, foi a frase da ativista Célia Xakriabá escolhida para acompanhar este boletim diário. No dia em que me sento na mesma cadeira em que conversei com Sónia para escrever esta peça, três dias depois da entrevista, os números subiram para 1256 indígenas afetados, 143 falecidos e 67 povos atingidos. 

“A gente está num momento bem desafiador aqui no Brasil para os povos indígenas”, começou por dizer Sónia Guajajara, coordenadora do APIB e uma das ativistas mais reconhecidas na representação dos povos indígenas brasileiros.

“O país tem na frente um presidente que é totalmente perverso, ignorante, e totalmente descomprometido com direitos humanos, direitos sociais e com o meio ambiente. Então, quando chega a pandemia nós não temos a quem acorrer. Não temos um governo que entende a gravidade, e faz tudo ao contrário do que tem de ser feito. É totalmente contrário a todas as indicações que são feitas pela Organização Mundial de Saúde, então isso afeta a população como um todo e principalmente nós indígenas — que já vivemos um total descaso do poder público de forma permanente”. 

Os problemas pré-Covid não tiraram férias e, segundo a ativista, “o desmatamento e as invasões aumentaram”, assim como “o garimpe ilegal e os conflitos”. Nestas entradas e saídas pelas aldeias, o risco de contágio torna-se maior e a insegurança vai morando com cada povo, como se de um membro da sua comunidade se tratasse. Em grande parte das aldeias não há máscaras nem álcool gel e os acessos a hospitais não são fáceis — um problema que se agrava nos lugares mais recônditos da Amazónia em que o barco é o meio de transporte primordial. “Outro problema que agora também apareceu foi a insegurança alimentar. Há gente que não tem o que comer e está precisando muito desse apoio”, conta a representante da Articulação dos Povos Indígenas.

É no sentido de responder rapidamente a um estado de urgência que a APIB tem trabalhado, criando “articulações com entidades, organizações não governamentais, para disponibilizar materiais para as aldeias”.A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) não está garantido o atendimento suficiente e com isso nós estamos agora olhando as pessoas a se contaminarem, a morrerem, e a gente fica-se sentindo muito impotente porque não podemos assumir um lugar ou uma responsabilidade que é do Estado Brasileiro. Nós enquanto comité estamos fazendo a apuração para pressionar o Estado Brasileiro, e para chamar a atenção internacional para ajudar a gente a pressionar o governo a assumir sua responsabilidade”, partilha Sónia. Para garantir que essa pressão é feita e os indígenas têm acesso a informação fidedigna, têm utilizado os possíveis canais de difusão e debate. 

A informação como arma na luta pela igualdade

“Nós [APIB] temos assumido um lugar importante, de passar a informação”, introduz Sónia. Através de um podcast, de cartilhas ou vídeos partilham dados relevantes no combate à Covid-19 nas aldeias, mas também refletem as implicações que a pandemia está a ter nas suas culturas. Para que as mensagens cheguem e sejam entendidas por um maior número de pessoas, têm “chamado as lideranças para falarem na língua materna” e divulgado os conteúdos através das redes sociais da APIB e dxs ativistas que lhe estão associadxs.

Numa parceria criada com a Midia India e a Midia Ninja, praticamente todos os dias existem conversas conduzidas por Célia Xakriabá, que levantam temas como o impacto da pandemia no funcionamento das escolas indígenas ou a invisibilidade dos povos durante os tempos que vivem. Além das conversas e dos boletins diários, vão depositando informação no Observatório da Quarentena Indígena, criado também pela APIB. “Esse observatório concentra todas as informações sobre o coronavírus, sobre a orientação e sobre o que tem sido feito”, explica a ativista.

Foto cortesia da APIB

Ainda que a internet seja o meio difusor de informação mais democrático e, por isso, o escolhido pela APIB para chegar ao maior número possível de povos indígenas do Brasil, as condições de acesso nem sempre estão garantidas. “A gente já tem muitos territórios que têm acesso à internet, mas é claro que isso não é, de forma alguma, a maioria”, esclarece Sónia Guajajara. “A gente está trabalhando para que tenha cada vez um maior alcance. Nesse momento que não tem, estamos trabalhando com rádios comunitárias e em conseguir o acesso à radiofonia nas zonas mais distantes, porque a gente precisa de garantir o acesso à informação. Mas para ter acesso à informação tem que ter acesso à comunicação. E o acesso à informação, neste momento, não é uma realidade para todos os povos, então a gente está tentando ver uma forma de ajudar com isso”, continua. 

Nesta relação entre os povos indígenas e o mundo digital, não existe uma tensão que comprometa a sua tradição e relação com a natureza. “Para mim essa visão de que o indígena não pode utilizar as tecnologias, porque se usar um celular está distanciado da cultura, é racista. De forma alguma. Todos esses meios, eles vêm-se somar aos que a gente já faz, ao que a gente já é”, lança Sónia. Percebe que possa existir um “desconhecimento” e uma “visão equivocada” – que se reflete no “distanciamento muito grande que ainda existe, da sociedade brasileira e dos povos indígenas”. 

“Nós temos todo o direito de acessar a todos os tipos de tecnologia disponíveis. Tanto que agora em tempo de pandemia nós indígenas, aqui no Brasil, saímos na frente de qualquer outro movimento no sentido de aproveitar e potencializar essas tecnologias. Realizámos o Acampamento Terra Livre, que é um acampamento que a gente faz presencialmente em Brasília há 16 anos, online. Foi muito potente, e a gente falou ali que estava demarcando telas e ocupando as redes sociais.”  

O vírus como sintoma de uma profunda doença da mãe Terra

Há muito que os povos indígenas alertam para a escuta das necessidades de preservação da mãe Terra. “Acho que é muito óbvio que o corona e tantos outros vírus aparecem por parte desse desequilíbrio da natureza. Dessa forma errada de utilização da Terra. É uma maneira totalmente predatória, destruidora mesmo, e isso faz com que a Terra reaja. E já faz tempo que ela vai dando muitos sinais, através das alterações climáticas, e as pessoas não escutam, não estavam prestando atenção”, conta Sónia.

Tal como em qualquer relação, a intimidade permite um olhar mais aproximado do outro. Neste caso, os olhares indígenas observam há mais de 500 anos a natureza, elemento basilar da sua cultura, e sentem na pele as mudanças causadas por quem está distante deste lugar do íntimo. Sónia acredita que “agora, se ninguém parou para escutar os sinais, a Terra fez o mundo parar, para que ela seja escutada”. “É um momento que muitas pessoas precisam entender o seu sentido e pensar esta reconexão e respeito à mãe Terra.”

“Não dá para a pandemia passar pela gente, e a gente passar por ela; tem que passar pela pandemia provocando uma mudança. E essa mudança é exatamente esse rompimento com este modelo totalmente predatório. Não tem como a Terra se sustentar e sustentar a gente por muitos anos, se a gente seguir conivente com essa destruição”.

Neste momento de paragem forçada, Sónia encontra três ameaças aos povos indígenas: “o genocídio, o ecocídio, por essa falta de política ambiental e essa destruição em massa, e o etnocídio, porque aqui a gente vive uma negação do território por parte do governo, onde não só este não quer demarcar terras indígenas, como quer reaver territórios com processos já concluídos”. “Isso para nós é tirar o direito a viver a cultura, a viver os costumes, que provoca o etnocídio, porque acaba com essa identidade própria de cada povo”, continua.

Ao longo da conversa com Sónia, as perguntas sobre o agora acabavam inevitavelmente por convidar a um olhar para o que têm sido as vidas das comunidades indígenas nas últimas décadas. Depois de uma esperança no governo de Lula que se prolongou pelo executivo de Dilma, e acabou por esmorecer e bater de frente com ameaças constantes na presidência de Temer, confessa que “já sabia que o que estava para vir seria muito pior”. “Agora nós estamos vivendo a materialização do que Bolsonaro disse em campanha. Ele não mentiu, sempre disse que ia ser um tirano. Todas as suas propostas de campanha já declaravam que ele era inimigo dos povos, das mulheres, dos pobres, de tudo o que represente diversidade. Então nós estamos vivendo isso em ataques, em retirada de direitos, em aumento de violência, e é um momento tão perigoso e já previsto na história do Brasil”. 

Foto cortesia da APIB

Viver em festa e fechar a porta ao medo

Levei para o nosso encontro uma frase que Célia Xakriabá apresenta na descrição da sua conta de Instagram, e que convida à reflexão sempre que a leio: “Somos as que insistem na festa, sem se esquecer que permanecemos em guerra”. A dada altura perguntei a Sónia como existe ânimo para a festa em tempos sombrios – será a festa o motor da resistência? “É mesmo porque não tem como a gente viver sem exercer a nossa cultura, e a festa faz parte. É um pertencimento, não é uma coisa à parte, e isso dá essa sustentação para a gente continuar na guerra. A vida em coletivo é que dá sustentação para a gente continuar enfrentando essa guerra que parece que não acaba mais”, respondeu com naturalidade.   

“Neste encontro com o outro a gente se realimenta, se reenergiza, para ter coragem de seguir em frente”. É no lugar do sensível que esse encontro se faz, seja presencialmente ou na esfera digital. Na verdade, o encontro, onde quer que aconteça, fecha as portas ao medo e eleva a força da vida coletiva. 

No nosso encontro a duas, digital, perguntei-lhe o que podíamos aprender com os ancestrais e generosamente mencionou “esse sentido da coletividade, a sensibilidade e a conexão com a mãe Terra, mas principalmente a solidariedade”. O nosso diálogo terminou assim: 

— Ontem no direto do Eloy e da Célia falava-se também da força da ancestralidade, que também é tão fundamental para vocês desde sempre. O que acha que nós, que estamos longe, podemos aprender com os ancestrais num momento como este? 

— A gente é guiada por essa ancestralidade que sempre ensinou que o sentido da vida é o coletivo. E muita gente se distanciou, alimentando mais o individualismo, se achando alto o suficiente… mas acho que essa consciência precisa de ser amplificada para lembrar às pessoas que é a Terra que dá o sustento e garante a vida, e sem ela nada nada nada é possível. E é isso, a nossa ancestralidade e a nossa raíz é o que realmente nos sustenta. Essa espiritualidade a gente não pode perder nunca mais e penso que cada pessoa precisa aceitar a sua. Entendendo essa força que vem dos encantados. 

— E no caso dos povos indígenas é importante continuar resistindo. 

— Não só é importante, como é necessário e urgente. 

Na data de conclusão deste artigo, dia 27 de maio, o boletim da APIB regista 1350 indígenas infetados, 147 indígenas falecidos e 71 povos atingidos. 

Se chegaste até ao fim, esta mensagem é para ti

Num ambiente mediático que, por vezes, é demasiado rápido e confuso, o Shifter é uma publicação diferente e que se atreve a ir mais devagar, incentivando a reflexões profundas sobre o mundo à nossa volta.

Contudo, manter uma projecto como este exige recursos significativos. E actualmente as subscrições cobrem apenas uma pequena parte dos custos. Portanto, se gostaste do artigo que acabaste de ler, considera subscrever.

Ajuda-nos a continuar a promover o pensamento crítico e a expandir horizontes. Subscreve o Shifter e contribui para uma visão mais ampla e informada do mundo.

Índice

  • Carolina Franco

    Carolina Franco tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e está a completar mestrado em Antropologia - Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.

Subscreve a newsletter e acompanha o que publicamos.

Eu concordo com os Termos & Condições *

Apoia o jornalismo e a reflexão a partir de 2€ e ajuda-nos a manter livres de publicidade e paywall.

Bem-vind@ ao novo site do Shifter! Esta é uma versão beta em que ainda estamos a fazer alguns ajustes.Partilha a tua opinião enviando email para comunidade@shifter.pt