Camisolas de equipas de futebol e uma barreira no Atlântico

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Foto de Gustavo Ferreira/via Unsplash

Camisolas de equipas de futebol e uma barreira no Atlântico

As camisolas de equipas de futebol são parte importante do vestuário no Brasil. Com esse cenário e guarda-roupa, cheguei a Lisboa, e foi um choque. Logo percebi que quase ninguém, além dos brasileiros, utilizavam camisolas de equipas.

Quando Jair Bolsonaro apareceu publicamente a vestir uma camisola do Futebol Clube do Porto, diversos media portugueses correram a tentar perceber o que aquilo poderia representar. Quando o fez novamente, o mesmo ocorreu, sem grandes conclusões. A resposta no Brasil para isso pode ser tão simples quanto aborrecida: nada. Mas esse fenómeno representa um choque cultural no simbolismo das camisolas de equipas. Além da do FC Porto, Bolsonaro já envergou a vestimenta do Al Wasl, dos Emirados Árabes Unidos, da maior parte das 20 equipas da elite nacional, e de diversas outras agremiações menores do país, sem que nenhuma das ocasiões representasse uma relação especial.

As camisolas de equipas de futebol são parte importante do vestuário no Brasil. Desde criança, além do clube do qual somos apoiantes, nos acostumamos a vestir diversos emblemas. Uma transferência como de Neymar para o PSG é capaz de alterar a moda no país. E não são apenas clubes europeus a fazer parte dessa moda, sul-americanos como o Boca Juniors, o River Plate ou o Peñarol são também parte clássica das inúmeras coleções. Um dos presentes mais comuns de alguém que viaja é trazer uma camisola da equipa local.

Feiras ao longo de todo o país são uma mostra do fenómeno. Réplicas são vendidas normalmente, remetendo quase à pirataria, mas com um fundamental teor democrático sobre um objeto de consumo. A minha primeira camisola foi uma do Robinho no Real Madrid, lembro-me até hoje. A um baixo valor, cerca de R$30 (5 euros), as réplicas aproximam crianças de diferentes classes sociais dos seus grandes ídolos. Em ruas como a 25 de março, em São Paulo, o maior comércio popular da América Latina, é possível encontrar camisolas a diversos preços e reproduções de todos os níveis, às vezes de equipas que nem se imagina, e mesmo com curiosos erros de digitação.

As originais também costumam terem preços mais acessíveis do que as europeias. A partir de R$60 (10 euros), e com alguma paciência, já é possível encontrar peças na internet. Algumas promoções são emblemáticas. Há pouco tempo, modelos de equipas patrocinadas pela Nike no Brasil, como o Santos ou o Internacional (de Porto Alegre) foram vendidos por cerca de R$40 (7 euros). As ruas do país foram tomadas pelas mesmas, e era raro uma partida entre amigos em que pelo menos dois não tivessem as camisolas.

Há as maiores coleções. Não são poucos os que gastam partes importantes do salário para aumentar o seu espólio. Equipas menos tradicionais e modelos raros são extremamente valorizados. Ir a um bar e as pessoas puxarem assunto sobre a sua camisola pode ser motivo de grande status. A oposição também existe. Namoradas costumam reclamar da “vestimenta inadequada” e esposas dos gastos com a coleção.

Foi nesse cenário que cresci. Nunca me importei com roupas, mas amante de futebol, as camisolas foram um dos poucos objetos que sempre me cativaram. Às tradicionais de Real Madrid e AC Milan, somei o meu interesse pelo Médio Oriente. Uma da seleção turca, um modelo raro do Fenerbahçe. E até a bela camisa do Palestino, equipa chilena fundada por palestinianos, no país que recebeu a maior diáspora dos mesmos na América. Sem nada viável na internet, certo dia, no carnaval, vi um rapaz com uma. Corri e expliquei a situação, e logo quis saber como ele havia conseguido a sua. A resposta foi frustrante, mas simbólica de como muitas das vezes no Brasil, uma camisola, é só uma camisola: “Cara, nem sei. É do Chile, certo? Acho que meus pais trouxeram quando foram lá”.

Com esse cenário e guarda-roupa, cheguei a Lisboa, e foi um choque. Logo percebi que quase ninguém, além dos brasileiros, utilizavam camisolas de equipas. Quando fui a um jogo de Portugal na Luz, a surpresa foi ainda maior, já que grande parte utilizava vestimentas normais. Um dia, sem perceber, saí com uma do Bayern, que creio ter tido um jogo importante à época. Não me lembro quantas vezes me perguntaram sobre a partida e qual a minha relação com a equipa. Percebi que não estava no Brasil.
Conversei sobre o assunto com vários amigos brasileiros. A maioria, seguiu o costume original, o que penso ser válido. Eu preferi seguir os ensinamentos de Grouch Marx: “Estes são os meus princípios. Se você não gosta deles, eu tenho outros”.
Meus pais tinham passagem comprada para me visitar. Um dos pedidos que fiz foi levarem roupas comuns e trazerem algumas camisolas de volta. Claro, a da seleção nacional e do São Paulo ficaram.

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  • Matheus Gouvea de Andrade

    Jornalista brasileiro, já colaborou com veículos como Folha de S. Paulo, Estadão e Piauí. Focado em questões internacionais, cursou RI no ISCSP por dois semestres. No período, apaixonou-se por Lisboa, pelas tascas, por Belém e Quim Barreiros. Esteve também em São Paulo, Buenos Aires e Juiz de Fora, cidade natal, e onde cobriu o atentado contra Jair Bolsonaro em 2018. De Literatura a futebol, pensa que o melhor é sempre saber o que se passa no maior número de cantos possíveis

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