Na Escola Pública, porquê software privado?

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Na Escola Pública, porquê software privado?

A associação Free Software Foundation lançou recentemente uma petição capaz de nos pôr a pensar — em causa está a utilização de software proprietário num contexto que deve ser tendencialmente livre, o da educação. 

A pandemia trouxe diversos desafios e novas realidades que ainda estamos a perceber como assimilar. Entre elas, para os mais novos, surgiu a possibilidade das aulas em ambiente remoto através de aplicações como o Zoom ou o Microsoft Teams. Se para alguns a adopção deste software foi simples e intuitiva, para outros foi um verdadeiro quebra-cabeças agravado pelo facto de, por não serem aplicações de cariz público, carecerem de material explicativo produzido pelas instituições responsáveis pela gestão do ensino. A escolha entre aplicações para aulas remotas ficou tacitamente entregue aos professores e a questão não foi muito para além das dúvidas passageiras. Contudo, a associação de promoção de Software Livre, a Free Software Foundation, lançou recentemente uma petição capaz de nos pôr a pensar — em causa está a utilização de software proprietário num contexto que deve ser tendencialmente livre, o da educação. 

Esta questão pode, como tantas outras, parecer um capricho mas recorrendo a uma analogia que qualquer um conhece facilmente a percebemos. Com certeza que muitos recordam os tempos de escola e as extensas listas de material, especialmente para as aulas de desenho ou de outras disciplinas específicas. Se os encarregados de educação eram obrigados a adquirir todo o material proposto, a linha vermelha estabelecia-se quando os professores queriam determinar a marca de que devia ser esse material. As canetas da Pelican, os lápis da Caran D’Ache e os compassos da Maped podiam ser de alguma forma distintos, mas os seus concorrentes serviam o propósito e abriam o leque de possibilidades para que cada um pudesse adaptar-se em função das suas necessidades. No fundo, era nesta abertura e possibilidade de adaptação às contingências de cada um que se prolongava o carácter democrático que caracterizava a escola pública. Contudo, o cenário tem vindo a mudar à medida que assistimos à digitalização do ensino e as plataformas usadas para o ensino remoto são o exemplo perfeito disso, com algumas excepções que vale a pena referir.

A problemática do Software Proprietário define-se de uma forma simples; ao contrário do software livre, o proprietário, detido por uma empresa e com objectivos comerciais acarreta consigo um potencial de exclusão e limitação de algum tipo. Em sentido inverso, o software livre caracteriza-se pelo cumprimento de 4 liberdades fundamentais que garantem o seu potencial de adaptação a qualquer contexto e, para além disso, o acesso público e livre ao código da aplicação que permite um escrutínio maior. Pensemos concretamente nos exemplos com que tivemos de lidar nesta pandemia para percebermos as implicações desta realidade. Comecemos pelo Zoom; foi uma das primeiras aplicações a ganhar tração assim que fomos levados ao confinamento. Primeiro dominou as empresas e depois começou tacitamente a ganhar espaço em ambiente de educação – pouco tempo depois, notícias davam conta de falhas de segurança na aplicação, que punham em causa não só os dados dos utilizadores, como a privacidade das suas conversas. Isto acontece porque ao esconder o seu código, o Zoom torna impossível que as falhas sejam detectadas por alguém externo à equipa, a não ser quando se tornam flagrantes. Já no caso do Microsoft Teams mantém-se a questão sobre o código fechado e levanta-se uma outra, sobre a dependência que se cria entre um futuro cidadão e uma só empresa que é deste sempre promovida, e com grande conivência dos estados, como indispensável ao uso de um computador. A realidade é que não é bem assim, por muito que a força do hábito torne difícil esta consciencialização. Como diz o artigo da FSF, este momento é não só perigoso porque expõe os mais novos e os seus dados, por exemplo, a falhas de segurança, como uma oportunidade perdida para os incentivar a valorizar o software livre.

Making students depend on nonfree software to learn is not only harmful to them in the short-term, but it is a failed opportunity to impart the values of free access, studying, sharing, and collaboration.

Valorizar o software livre parece, mais uma vez, uma questão abstracta, mas recorrendo mais uma vez a uma analogia com o mundo físico é fácil de perceber. Se quando estamos perante uma ferramenta – digamos um martelo – podemos usá-lo para o que bem nos apetecer, emprestá-lo a quem quisermos, e modificá-lo a nosso gosto, no caso do software proprietário todas estas dimensões são altamente limitadas. Só o podemos usar para o que foi definido, não o podemos emprestar, nem distribuir, em grande parte dos casos, e nem sequer há opções que permitam modificá-lo. Em sentido inverso, o software livre mantém o foco na eficiência garantindo que esta dimensão de liberdade nunca se perde. Bom exemplo disso é o Moodle, também usado nas escolas, e disponível em licença aberta (GNU GPL) como definida pela FSF, pelo que que cada estabelecimento de ensino ou professor pode modificar à sua maneira, de acordo com as suas necessidades, e hospedar nos seus servidores, promovendo uma menor concentração dos dados e uma maior autonomia tecnológica globalmente. E autonomia aqui é a palavra chave.

Se o software proprietário se tornou líder de mercado pelo forte investimento em marketing e em simplificação dos produtos até exigirem um nível de compreensão muito baixo das tecnologias em que operam, o software livre é um convite constante à compreensão desse lado invisível do complexo universo tecnológico que rege as nossas sociedades. Por absurdo, peguemos no clássico provérbio sobre a cana e o peixe e recuemos um pouco mais. No caso do software livre não se dá o peixe, nem se empresta a cana, incentiva-se o aluno para que perceba que com as ferramentas que tem ao seu dispôr a pode construir por si. Se no caso dos mais novos é difícil perceber em que isso pode contribuir directamente, atentando ao seu crescimento facilmente detectamos a alienação a que conduz uma vida de software privado. É esse hábito que ilude a atenção que devíamos dar ao papel dos algoritmos por exemplo no debate público, ou que nos impede de decidir em total consciência sobre uma aplicação, que apenas mais tarde percebemos que recolhe determinados dados ou tem determinados perigos (FaceApp, House Party, Cambridge Analytica, não faltam exemplos).

Para além disso, é também nesse hábito de utilização acrítica de Software Proprietário que assenta a perigosa e galopante perda de direitos a que temos assistido nos últimos anos. Podemos falar do direito à invisibilidade, abalado pelo capitalismo de vigilância, mas podemos também falar do direito à auto-determinação, como Jonas Staal e Jan Fermon propõem na sua acusação às Nações Unidas sobre o Facebook; ou do simples direito à propriedade que tem sido posto em causa pela nova tendência das subscrições, para que a loja de ebooks da Microsoft continua a ser exemplo perfeito. Todos os livros lá comprados desapareceram como por magia das bibliotecas virtuais dos seus criadores que nunca detiveram de facto os ficheiros, porque o sistema tecnológico desenvolvido os torna inúteis ao processo.

Assim, se por um lado é de louvar o que a tecnologia nos trouxe, por outro é preciso começar a desenvolver uma posição crítica, para que a tecnologia não se torne – ou se continue a tornar – num meio de dissipação das desigualdades. Apesar de os computadores, num modo geral, e a Internet, em particular, funcionarem perfeitamente sobre o seu conjunto de normas abertas e formatos pré-definidos (standard) que permitem uma enorme interoperabilidade entre sistemas, as estratégias lucrativas das empresas do sector tecnológico e as suas financeiramente volumosas campanhas de marketing são o suficiente para nos ir convencendo do perfeito contrário, até que momentos nos mostram o lado negro da questão. Enunciemos, para fechar, a dependência que o mundo do design tem do software de uma só empresa, a Adobe. Recordemos neste particular a situação desesperante em que estiveram os designers venezuelanos que, por várias semanas, se viram proibidos de usar o programa por o seu país ser alvo de uma sanção económica que impedia a empresa norte-americana de negociar no seu território. Ou as ofertas de emprego que, mais do que pedir que um candidato cumpra a sua função, com as ferramentas que lhe aprouver, cada vez mais pedem domínio sobre software específico de marcas específicas, cuja diferença sobre o produto final não é assim tão significativa.

Mais do que tudo, educar recorrendo a software livre, pode ser uma forma de educar para um visão consciente e crítica da sociedade e da sua complexidade tecnológica; educar para a criatividade, a adaptação, a reinvenção, mais do que para a eficiência competitiva do mercado; educar para os respeito pelos direitos humanos mais do que pela simplicidade do desempenho de tarefas. É por isso que em tempos de mudança não devemos perder essa oportunidade.

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  • João Gabriel Ribeiro

    O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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