Sobre o pequeno monstro extremista que vive em nós

Foto de gaf.arq/CC BY-SA 2.0

Sobre o pequeno monstro extremista que vive em nós

Uma reflexão sobre a polarização, as suas consequências e possíveis formas de fuga.

Há dez anos quando vivi em São Paulo as ruas estavam cobertas de graffitis com a frase: “Mais amor, por favor”. Na altura talvez não lhe tenha ligado muito, mas agora ela não pára de surgir na minha cabeça: “Mais amor, por favor”. E embora se assemelhe muito a um desses mantras de auto-ajuda, parece ser a única coisa que faz sentido. O que melhor resume tudo, resolve tudo, ajuda tudo.

Dizem que sou uma idealista. De facto, fiz um teste de personalidade que dizia que essa era a minha melhor qualidade e o meu pior defeito. Isso significa basicamente que me preocupo. Preocupo-me com o que vejo, com o que leio, com o que oiço. Significa que uma notícia de jornal, às vezes em nada relacionada comigo, tem o poder de me tirar o sono. E ultimamente isso tem vindo a acontecer com mais frequência.

Por outro lado, ser idealista não significa que eu faça alguma coisa a respeito do que me preocupa. A maior parte das vezes não. Quando penso em agir regra geral paraliso perante a magnitude dos problemas, pela quantidade de vozes sonantes e pelo tom pouco empático de muitas delas. Principalmente pelo tom pouco empático. Não sei como salvar o mundo, e sinto-me bastante impotente até para tentar. Imagino que não serei a única.

Mas é provavelmente nessa discrepância entre preocupar-me e não agir que vive o problema. E provavelmente ele não é só meu. Vivemos numa altura estranha. Talvez cada pessoa em seu tempo tenha pensado exactamente o mesmo. E expressões como “isto nunca esteve tão mal” dão-me arrepios. O mundo sempre teve problemas graves e agora não é excepção. Então antes de me lançar é importante esse parêntesis: não nos deixemos cair em dramatismos. Dito isto, há uma sensação de distopia no ar que é difícil sacudir. Digo que vivemos tempos estranhos porque as coisas pareceram ter desabado num piscar de olhos. Um mundo aparentemente estável deu lugar a uma espécie de caos. No entanto, como é óbvio, esses problemas que penso já cá estão há muito tempo. Falo de coisas como as alterações climáticas, a subida de partidos autoritários ou o domínio das redes sociais. Tudo se tornou subitamente grave, urgente, assustador.

Não me lembro por exemplo, de antes ter medo de um partido político. Em casa sempre discutimos política. É divertido porque temos pontos de vista muito diferentes, uns a tender para a esquerda, outros para a direita. Mas a possibilidade de um ou outro lado ganhar as eleições era encarada com naturalidade por todos. Não me lembro de se falar com preconceito de um lado ou de outro. Não havia bons ou maus. Nem salvadores ou demónios. Nem os razoáveis ou os fanáticos. A discussão política sempre foi apaixonada, mas não rancorosa, maldosa ou assustadora. Essas qualidades são novas para mim.

De onde vem então essa gravidade? Porque nos tornamos subitamente tão radicais? Para perceber isso precisamos perceber como funcionam as redes sociais e a comunicação. Recentemente saiu um documentário chamado Social Dilemma que é urgente que seja visto por todos. Entre outras coisas, explica como é que as redes sociais nos levam a ficar cada vez mais polarizados. Explicando de uma forma muito simplificada: as redes sociais funcionam com algoritmos que me sugerem conteúdos, noticias e até o auto-complete do Google de acordo com as minhas preferências. Assim se eu tendo para um lado político, vou receber conteúdo que suporta essa opinião, que me dá razão. Outra coisa que nos dizem é que as notícias mais polémicas e as fake news despertam-nos muito mais a atenção. Então obviamente, essas são as que recebemos mais. Nada disto foi pensado como um plano maléfico, mas como uma ferramenta que potencia o lucro. E agora é vendida como uma ferramenta com o poder de manipular a opinião pública. Mas o que é que isso significa para nós? Se eu não diversifico a informação que recebo, que a maior parte de nós não o faz, se as minhas notícias, vídeos e conteúdo em geral é o que a internet me sugere (Google, Facebook, Twitter, etc), então eu vou começar a ter uma narrativa do mundo cada vez mais limitada. Um pouco como um burro a quem pomos umas palas, ou como em Handmaid’s Tale, em que as aias são obrigadas a usar esses chapéus que só permitem olhar em frente, sem espiar para o lado. Aos poucos, o mundo só parece fazer sentido de acordo com a minha opinião, e os outros, os que pensam diferente, parecem cada vez mais distantes de mim, mais incompreensíveis. E o que é grave é que esse processo em que eu lentamente me polarizo é obviamente tão subtil, que eu não >percebo que acontece. Não percebo que estou cada vez a tender para zonas mais escuras de quem sou.

O Dilema das Redes Sociais ou a sociedade da pós-realidade?

Somos provavelmente ingénuos, ou simplesmente pouco conhecedores de quem somos. Porque quando olhamos as redes sociais é fácil identificar a polarização nos outros. Mas acreditamos sempre que nós não somos manipuláveis, que nós estamos em controlo das nossas opiniões. Mas quando vemos temas tão sensíveis como a emigração, os sem abrigo, ou etnias minoritárias serem tratados nas redes sociais com respostas frias, sem qualquer empatia, devíamos já ter começado a olhar para dentro. Quando cada notícia, não importa quão aparentemente inocente, simples ou positiva, gera tantos comentários maldosos já devíamos ter começado a reflectir sobre o que se passava, e de que forma estávamos envolvidos.

Estamos sempre envolvidos, porque somos todos sociedade. E eu culpo em parte a linguagem. Tantas vezes falamos da sociedade como essa terceira pessoa, tão longe de nós. Há uns dias ia pela rua, e alguém dizia num tom irritado: “Isto é preciso é pô-los na ordem”. Eu culpo esse tipo de frases dirigidas a pessoa nenhuma, senão a grupos vagos de pessoas não definidas, estereotipadas. Essas caixas que usamos para falar dos políticos, das minorias, dos que são diferentes, dos que se radicalizam. Essa linguagem torna-os a todos muito distantes de mim. E torna a sociedade uma coisa que não faço parte, e pela qual não me responsabilizo.

Mas então o que significa estarmos todos a radicalizar o discurso? O que significam todos esses comentários de ódio nas redes sociais? Lembro-me muito do discurso de Greta Thunberg nas TED Talks, em que em certo ponto ela pergunta: “Are we evil?”. Parece que nas redes sociais, por serem esse espaço em que podemos ser praticamente anónimos, é fácil revelar-se a verdade natureza humana. E a ser essa teoria verdade, parece que afinal Hobbes tinha razão, e essa natureza é à partida má. Mas essa é claro uma explicação demasiado simplista.

Quando comecei a pensar em tudo isto e a olhar para dentro tornou-se evidente que a minha forma de pensar era um pouco mais extrema do que antes. Porque cada vez mais pessoas perto de mim apoiam discursos e partidos que me assustam. O extremo puxa o extremo, dizem. E embora eu saiba à partida que elas não são más pessoas, e que querem, tanto quanto eu, ver o mundo melhor, apanho-me com frequência a pensar, por exemplo, que a única possibilidade é que sejam ignorantes. Quando o discurso me parece inaceitável trato-as com condescendência. Penso que são cegas, mal informadas, que vivem manipuladas. E aos poucos entre nós cria-se um abismo. Serei eu má?

Certamente. Pelo menos em parte. Lembro-me sempre da música do Rui Veloso, e desse lado lunar que existe em cada um de nós. Mas eu acho que a raiz desta irracionalidade não é a maldade em si, mas o medo. O medo faz-nos perder grande parte do nosso pensamento critico, racional. Faz-nos ceder ao instinto de dramatizar, da catástrofe iminente. E é preciso atribuir culpas. Eu estou tão ocupada a chocar-me com a opinião alheia que eu não me apercebo que o meu medo me torna cada dia um pouco menos compreensiva e mais radical em relação a quem pensa diferente de mim. Estamos tão focados no outro, que nos está a escapar completamente esse mesmo processo de radicalização está a acontecer dentro de cada um de nós. Não interessa muito para que lado da história tendemos, se vamos para a esquerda ou para a direita, o que parece relevante é que estamos a ir cada vez mais para uma ponta.

E porque é que tão grave a polarização? Percebemos a olhar para a história que a polarização foi um dos primeiros sintomas de sociedades a caminho de governos autoritários. A polarização esvazia o debate, põe os temas em caixas muito fechadas, isto é bom, aquilo é mau. Este grupo é bom, aquele é mau. E de repente, tudo soa a ameaça. Ao tornar-nos mais radicais, tornamo-nos menos tolerantes, menos capazes de ouvir o outro lado sem preconceito. Também nos tornamos mais manipuláveis, e propensos a adorar salvadores, que podem muito bem ser tiranos. Porque quanto mais pequena se torna a nossa janela para o mundo mais este parece hostil, perigoso e nós nos tornamos defensivos. Esse modo de defesa do corpo, já sabemos, é surdo e cego. Quando estamos preocupados em sobreviver só procuramos salvações rápidas. E a democracia é um processo lento.

Vivemos numa altura estranha porque estamos a perder a habilidade de conversar. Há pouco tempo falava com um amigo que vai votar num partido de extremos. E eu dizia-lhe várias razões para que não o fizesse, usando notícias que tinha visto. Ao que ele me respondia, isso não é verdade, isso são fake news. E de facto, eu tive dificuldade em rebater aquilo. Num mundo em que nenhuma informação parece credível, em que tudo pode ser negado, em que perdemos a fé nos outros, como podemos conversar?

Então é preciso voltar ao princípio, e à história do “Mais amor, por favor”. Esse lado idealista que tenho precisa de perder o medo, e deixar-se de queixas vazias, culpas sem dono. Precisamos outra vez atrever-nos a novas ideias, e procurar compreender esse outro lado do espectro. No livro Desobedecer, Frédéric Gros escreve: «A amizade é uma máquina de guerra contra as comunidades de obediência. Alimenta-se de discussões, de concessões, de partilhas (…). Basta falarmos para que deixemos de adorar de modo beato».

E ele oferece então, o que para mim é uma fórmula que poderia ajudar tudo: “(…) é necessário urdir uma rede de sociedades de amigos, plurais, dispersas, discutindo arduamente, mas sem ódio, nunca deixando de polir desacordos por meio da fricção do espírito de cada um contra o discurso dos outros.”

Precisamos admitir que somos parte desta sociedade que está a ser manipulada e agir para sair deste loop. O primeiro passo talvez seja a curiosidade, querer saber mais sobre o processo de polarização, sobre o outro lado do espectro político, sobre meios de obter informação mais diversificada. Quem sabe até começarmos a pensar em formas de estar menos digitais, e libertar-nos gradualmente das redes sociais. Se possível largar o telefone e ir ter uma conversa lá fora. Alimentar diálogos sem ódio, como sugere Gros.

Termino com o inevitável apelo: “Mais amor, por favor”. Mais amor em cada diálogo, em cada julgamento, em cada comentário.

Texto de Rita Medina

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