Arlo Parks quer “inspirar as pessoas a sentirem-se confortáveis na sua pele” — a sua música é a solução

Arlo Parks
Arlo Parks / DR

Arlo Parks quer “inspirar as pessoas a sentirem-se confortáveis na sua pele” — a sua música é a solução

“Sempre foi um sonho interior meu seguir uma carreira musical, mas quando assinei o meu contrato de gravação com a Transgressive, depois dos meus exames no verão de 2019, soube que fazer música era verdadeiramente o meu caminho”, conta Arlo numa entrevista feita à distância com o Shifter, quando ainda estava a terminar de gravar Collapsed in Sunbeams. 

A Rough Trade estava de portas abertas. Uma rapariga com cerca de 16 anos entra, com um casaco de ganga coberto de badges, e olha atentamente para a lista alfabética de vinis. Escolhe Elliot Smith. Fica o resto da tarde, perdida no tempo, a deambular pela loja, com o disco debaixo do braço, a deixar-se levar por o que lhe vai aparecendo à frente. A mesma rapariga, anos mais tarde, prepara uma apresentação na Rough Trade para promover o lançamento do seu primeiro álbum. Essa rapariga é Arlo Parks. 

É hoje que dá a conhecer Collapsed in Sunbeams, mas Arlo já está nas playlists de pessoas que a ouvem um pouco por todo o mundo há pelo menos um ano. Já foi a banda sonora a desencadear primeiros beijos, já motivou outras pessoas a acreditarem mais em si; tem feito sarar feridas de pessoas cujos rostos nunca viu. De voz cristalina, que traz conforto à alma de quem a ouve, Arlo, com apenas 20 anos, consegue falar por uma geração que se sente profundamente triste e sem rumo, mas a quem quer dar esperança. A esperança que ela própria vai ganhando, à medida que deixa os raios de sol entrarem-lhe pela janela, na sua cidade cinzenta.

Como grande parte das crianças, Arlo começou a escrever com 7 ou 8 anos; a diferença é que já nessa altura escrevia pequenos contos e conseguia transportar do pensamento para o papel histórias paralelas às suas. Essa relação íntima com a escrita encaminhou-a para a poesia e, aos tinha 15 anos, decidiu “pegar na guitarra” e começar a aprender, de forma autodidata, a fazer beats no GarageBand. “Sempre foi um sonho interior meu seguir uma carreira musical, mas quando assinei o meu contrato de gravação com a Transgressive, depois dos meus exames no verão de 2019, soube que fazer música era verdadeiramente o meu caminho”, conta Arlo numa entrevista feita à distância com o Shifter, quando ainda estava a terminar de gravar Collapsed in Sunbeams. 

Anaïs Oluwatoyin Estelle Marinho nasceu no nono dia do oitavo mês do novo milénio. Não assistiu à febre dos Beatles, não viveu a revolução punk de uma Londres a fervilhar, nem viu a curta vida em ascensão das Bikini Kill. Mas havia uma atmosfera que já a aguardava antes sequer de ter aberto os olhos pela primeira vez. O caminho disruptivo desbravado por aqueles cujas músicas ouviu já sem poder assistir aos seus concertos, passou-lhe por osmose um legado em que talvez ainda hoje não tenha pensado de forma profunda: vale sempre a pena cantar o que nos deixa desconfortáveis. 

Anaïs foi-se tornando Arlo Parks à medida que ia crescendo, em Hammersmith, na zona Oeste de Londres, a ouvir línguas e sonoridades tão distintas quanto as de Fela Kuti, Jacques Brel e Otis Redding. Essa diversidade do que ia tocando no leitor de CDs, em casa, abriu-lhe portas para outros lugares não tão óbvios, que se juntaram às referências da sua ancestralidade — e que, como se vê pelo seu nome, são múltiplas. Olhando para trás, Arlo sente que “vir de tantos lugares diferentes definitivamente abriu o [meu] coração para diferentes culturas e formas artísticas desde muito nova”. E às referências dos seus familiares adultos, foi juntando as suas. 

O que a jovem londrina ouvia nos seus fones, no quarto ou pelas ruas de Londres, trouxe-lhe uma identificação imediata com a confusão de sentimentos e pensamentos que lhe vinham à cabeça sem que precisasse de se esforçar, porque os estava a viver naquela altura. Era como se tivessem escrito aquelas canções a partir do que estava a sentir. A generosidade dos músicos que começou a escolher ouvir nos momentos a solo – como Elliott Smith e Radiohead, cuja música é sempre “tão aberta e pessoal” – foi moldando, ainda que de forma inconsciente, o que viria a ser a sua postura perante a poesia. Despida de preconceitos, sem ter medo de assumir a dor. “É relativamente normal para mim ser vulnerável”, diz-nos. E é como se assumisse todas as vulnerabilidades, as suas e as nossas — até as que por vezes tentamos esconder.

Desde que lançou o EP Sophie, em 2019, Arlo Parks nunca parou de escrever a vida em canções. Fala-nos de relações pouco saudáveis, da angústia de viver numa permanente sensação de tristeza, da incompreensão que sente (ou sentimos) na adolescência, e de como precisamos de saber abraçar a dor. 

I’m just a kid I / Suffocate and slip I / Hate that we’re all sick ” 

refrão de “Sophie” (2019)

O que tem acontecido na sua vida, para já, vai convocando inevitavelmente as memórias dos tempos em que nunca imaginou que a música que fazia para se libertar, viria a libertar outrxs. No período da sua adolescência, Paramore foi parar à sua playlist e começou a admirar Hayley Williams; com 19 anos foi convidada para abrir os seus concertos. Aos 13 anos parava para ler a NME em quiosques e lojas de revistas; também aos 19 foi capa desta revista. Com 16 anos enviou demos improvisadas para o BBC Introducing; aos 20 venceu o prémio BBC Introducing Artist of The Year. Já passou pelo NPR Tiny Desk e pelo COLOURS, cantou num Glastonbury sem plateia, foi destacada por Billie Eilish, tornou-se amiga de pessoas que admirava, como Romy Madley Croft (The XX) e Loyle Carner, mas tudo lhe parece ainda “surreal”. Pelo olhar doce e sincero com que o afirma tantas vezes através das suas redes sociais e em diversas entrevistas, difícil seria não acreditar.

Sem precisar de ser algo que não é, e inspirada por outras mulheres artistas como “Pat Parker, Beth Gibbons dos Portishead, Soko, Audre Lorde, Clairo e Janelle Monáe”, começa a tornar-se uma referência para jovens da sua idade. As palavras valem muito; vindas da profundidade da alma, deixam marcas capazes de influenciar quem as recebe. E as palavras de Arlo Parks já estão a mudar vidas. 

Arlo Parks fala sobre o que dói para deixar a luz entrar 

Depois de lançar o EP Super Sad Generation (2019), que vendeu numa edição exclusiva acompanhada por um livro com as letras das canções ilustrado também por si, Arlo começou a dar pistas do que viria a ser o disco que hoje passa a estar disponível para todos os que o quiserem a ouvir. “Black Dog”, o primeiro single de Collapsed in Sunbeams, foi escrito a partir da história de uma amiga que não aguentava mais o peso da vida e pensou em desistir. Como contou ao New York Times, esta música surgiu como “parte do processo de luto” da situação que viveram juntas, a partir de um excerto de um poema que tinha escrito antes. Quando ouviu Gianluca Buccellati, o seu produtor, a tocar os acordes de guitarra que viriam a estar na música final, sentiu “uma sensação de Deja Vu” e, ao mesmo tempo, “como se um peso saísse de cima”. E foi aí que, como disse em entrevista ao NME, correu para escrever ao seu manager: “nunca me senti desta forma em relação a uma canção”. 

Ao Shifter, Arlo conta que a música sempre foi a (sua) resposta: “[a música] sempre foi algo a que recorri, para me acalmar e me expressar em tempos caóticos. Foi algo que realmente me ajudou durante um período incerto e instável — tanto enquanto music maker, como amante de música”. E o que partiu de algo muito íntimo, tornou-se inevitavelmente parte de outras histórias, tanto na vida real (basta ver rapidamente os comentários a “Black Dog” no YouTube), como na ficção (a compor a banda sonora de “I May Destroy You”, série de Michaela Coel). 

A poesia de Arlo Parks tem uma característica dificilmente conseguida de forma tão natural, por qualquer artista: é suficientemente comum para que pessoas com backgrounds distintos se identifiquem, e suficientemente particular para que cada um que a ouve, individualmente, identifique referências ou acontecimentos que acreditava só se passarem consigo.  

Let’s go to the corner store and buy some fruit

I would do anything to get you out your room

Just take your medicine and eat some food

I would do anything to get you out your room

It’s so cruel

What your mind can do for no reason”

excerto de “Black Dog” (2020)

Collapsed in Sunbeams é uma amálgama de experiências da adolescência – esse período tão desprezado, mas tão importante na vida – que nos falam sobre amores não correspondidos e a dor de ver quem gostamos fazer com alguém o que costumava fazer connosco (“Eugene”), sobre a coragem de nos assumirmos como somos perante os outros – sobretudo quando os nossos pais também não nos aceitam (“Green Eyes”) – , sobre os “e se” que nos tiram o sono (“Caroline”), sobre ser importante sabermos que não estamos sozinhxs (“Hope”). As suas faixas são, ao mesmo tempo, o recuperar de um lugar de fala que nem todas as pessoas queer tiveram a oportunidade de ter à medida que iam crescendo. 

Nesta caminhada, Arlo Parks tem assumido a sua queerness ao cantar sobre a mesma, mas também sendo vocal quanto às preocupações que lhe surgem quando pensa que todos os processos de descoberta são diferentes, e que esse assumir recebe respostas diferentes em contextos diferentes. “Eu tive um grupo muito variado e vibrante de amigos que me fez sentir em casa, de todas as formas possíveis. Havia sempre uma sensação de liberdade e uma isenção de julgamentos”, partilha connosco. Mas sabe que o mesmo não se passou com todxs xs adolescentes a crescer em Londres. É por elxs, também, que evoca temas como o confronto entre “o que penso de mim/ o que xs outrxs pensam” e que celebra o amor de uma forma inclusiva, agregadora. Quando foi nomeada para o Dazed 100, disse que o seu objetivo era “publicar um livro de poesia sobre as emoções da adolescência e organizar um lançamento com artistas queer jovens e locais”; com o seu disco de estreia, e os que ainda estão por vir, a intenção não é muito diferente: “espero que a minha música ofereça um lugar seguro para toda a gente, para que sejam elxs mesmxs completa e desavergonhadamente. Tudo o que quero fazer com a minha arte é inspirar as pessoas a sentirem-se confortáveis na sua pele.”

Tal como a música de Arlo Parks pode ser um espaço seguro onde pessoas queer encontram narrativas semelhantes às suas, outros artistas foram sendo a sua inspiração para criar esse lugar. Destaca realizadores como Xavier Dolan (Les Amours Imaginaires)  e Gus Van Sant (Elephant), que exploram narrativas não-normativas nos seus filmes, mas também confessa a influência de Frank Ocean e Syd dos The Internet, que além da música que criam se abrem publicamente e são membros ativos na luta pelos direitos LGBTQI+. Com a sua música, que se “interliga completamente com a poesia” que escreve, quer chegar a toda a gente; basta que exista um qualquer elo de ligação. “Gosto da ideia de as minhas canções estarem pelo mundo fora, a ganhar novos significados para pessoas diferentes.”  

Ainda que Collapsed in Sunbeams possa ganhar significados diferentes em cada pessoa que ouve o disco, e que o contexto em que cada umx o ouve seja igualmente diverso, há uma série de situações em que Arlo o imagina a ser ouvido, que partilha com o Shifter: “numa roadtrip com alguém que se ame, sozinhx no teu quarto, a ver o pôr-do-sol no parque ou numa volta de bicicleta pela floresta”. 

O disco de Parks resulta de um processo de maturação, em plena pandemia, com o distanciamento necessário que já tem perante algumas das coisas que foi escrevendo. “É um novo capítulo, uma vez que ganhei mais confiança em mim enquanto ser humano e artista”, diz ao Shifter. “[Collapsed in Sunbeams] é sobre vivermos fiéis a nós mesmos e aceitarmos que o amor existe num milhão de formas”. 

Some of these folks wanna make you cry / But you gotta trust how you feel inside

And shine”

Refrão de “Green Eyes” (2020)

Arlo Parks está, a partir de hoje, a convidar-nos a olhar para dentro, consigo — e a deixar que entre luz, até nos dias mais negros, pontuados por solidão e cansaço. Há quem diga que quanto mais acreditarmos na mudança, e deixarmos que a positividade nos contagie, melhores serão os nossos dias. Para que a mudança aconteça, Parks acredita que o papel da Geração Z passa por “ser vocal, ser ativo, gerar mudança nos nossos próprios círculos e vidas, e perceber que todos podemos ser esses agentes de mudança”. 

Há muito, ainda, por acontecer na vida e na carreira de Arlo. Hoje estreia Tonight With Arlo Parks, um pequeno documentário que celebra o lançamento do seu novo disco e que explora os desafios de ver uma carreira em ascensão (aparentemente) parada pela pandemia, mas é a partir da mesma sala de estar, em que tudo começou, que o vai ver. Há um turbilhão de coisas a acontecer consigo, através da sua música, mas mantém-se serena, a recolher o êxtase do presente, sem pressa para desvendar o que ainda está por vir. E são as suas palavras que nos dão essa garantia: “Gosto de levar as coisas um passo de cada vez. Estou grata por este crescimento, é overwhelming, mas estou rodeada por pessoas boas e estou sempre a lembrar-me a mim mesma porque é que comecei a fazer música: para espalhar alegria, para me expressar e para ser honesta”. 

“I think of you all – listening to me in your bedrooms, kitchens, washing fruit or playing cards or crying with intent. 

I’m just like you. 

Sometimes tired, sometimes strong. 

I know sometimes it’s rough and you can’t get it to stop. 

Sometimes you’re sad on the phone, sometimes you can’t stop loving. 

But I promise it will be so good, so soon.”

excerto do poema “Espoir” (2020)

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  • Carolina Franco

    Carolina Franco tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e está a completar mestrado em Antropologia - Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.

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