Daniel Dumile/MF DOOM: uma vida entre batidas e heterónimos

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Foto de Possan, tirada no Hultsfredsfestivalen, na Suécia, em 2011. CC BY-SA 3.0

Daniel Dumile/MF DOOM: uma vida entre batidas e heterónimos

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Daniel Dumile, mais conhecido pelo seu alter-ego MF DOOM, morreu no passado dia 31 de Outubro, uma notícia divulgada no último dia de 2020. Mas podemos manter vivo o seu génio incomparável e as suas várias personalidades, tocando os seus álbuns e deixando-nos levar pelo mundo que criou para si e que abriu para nós.

No último dia do ano, momentos antes de terminar 2020, o mundo recebeu a triste notícia de que Daniel Dumile, mais conhecido pelo seu alter-ego MF DOOM, morreu no passado dia 31 de Outubro de 2020. Fãs e artistas de todo o mundo correram para a Internet numa tentativa de demonstrarem o seu espanto, tristeza e apreço pelo músico.

O génio de Dumile é indiscutível: um flow único e uma voz imediatamente reconhecível, uma aptidão engenhosa para brincar com palavras e criar letras que são ao mesmo tempo simples e complexas, e a facilidade com que monta instrumentais, também eles dotados de uma aparente simplicidade genial, tornam-no num artista multifacetado que durante a sua curta carreira contribuiu fortemente para o enriquecimento da cultura do Hip-Hop.

A história de origem de MF DOOM

Muito antes de o super vilão mais adorado do Hip-Hop ter sido inventado, Daniel Dumile, nascido em Londres em 1971, fazia parte de uma crew de Hip-Hop que não se focava na vertente musical. O grupo de amigos que gostava de se juntar para se divertir, fazer break dance ou grafitar paredes, foi fundado por Zev Love X (o próprio Daniel Dumile), DJ Subroc (o irmão de Dumile, Dingilizwe) e Rodan (que mais tarde se afastou do grupo e deu lugar a Onyx the Birthstone Kid). Juntos acabaram por formar os KMD, Kausing Much Damage ou A positive Kause in a Much Damaged society, e por se dedicar à música.

Assinaram contrato com a Elektra Records e lançaram o seu álbum de estreia, Mr. Hood em 1991. Em 1993, gravaram o segundo projeto, Black Bastards, que acabou por só ser lançado em 2001 devido à controvérsia que envolvia a capa do álbum. O grupo acabou por se separar também durante 1993, depois de DJ Subroc ter sido atropelado mortalmente, deixando Dumile sem irmão.

Os anos passaram e só em 1998 é que se voltou a ouvir falar de Dumile, desta vez sob o alter-ego que o tornou mais conhecido, METAL FINGERS DOOM, ou MF DOOM, um supervilão baseado na personagem da Marvel Comics, Doctor Doom. No entanto, ao longo da sua carreira, este não foi o único pseudónimo que o artista tomou.

Várias personagens para tornar a história mais interessante

Uma das características que mais interesse desperta em Dumile é a quantidade de heterónimos que criou e explorou ao longo dos anos. A quantidade de personagens que interpreta enriquece a história que o artista quer contar, tornando-a também mais relacionável, explorando várias perspectivas sobre o mesmo tópico.

MF DOOM foi o alter-ego com mais tempo de antena. O velho vilão incompreendido, amado pela população no geral mas detestado por quem está no poder, aparece em praticamente todas as colaborações que Dumile fez. Assina um total de 3 álbuns a solo (contando com Born Like This, que foi lançado sob o nome DOOM), dois dos quais (Operation: Doomsday e MM…FOOD) vistos como álbuns clássicos do Hip-Hop, nos quais Dumile mostra vezes sem conta a sua habilidade para produzir beats e para escrever letras interessantes e divertidas.

Viktor Vaughn (nome baseado no nome real de Doctor Doom, Victor Von Doom) é muito parecido a MF DOOM mas é mais novo, com a mania que sabe tudo e que, apesar de discordar de MF DOOM em algumas temáticas, ainda o vê como uma espécie de mentor. Sob este nome, Dumile lançou apenas dois álbuns. Vaughn aparece também na faixa Fancy Clown de Madvillainy, onde fala com uma rapariga que o traiu com… MF DOOM.

Por fim, King Geedorah é um extraterrestre reptiliano baseado no mítico monstro Godzilla que utiliza MF DOOM como um emissário da informação que quer passar. Apesar de ser o alter-ego mais intimidante, continua a ser alguém que revela dificuldades em integrar-se, o que é sem dúvida uma abordagem interessante para a personagem.

O resultado final é uma miscelânea de pontos de vista e de personalidades como o mundo da música (e, mais concretamente, o do Hip-Hop) nunca tinha antes visto.

O objetivo da máscara

Relativamente a MF DOOM, a característica que mais chama à atenção é a máscara de gladiador que usava em todas as suas aparições. E a razão pela qual Dumile considerou o seu uso é simples e reflete a sua personalidade.

Antes do nascimento do vilão, o Hip-Hop estava a convergir para uma situação em que era mais importante a apresentação do artista e da sua arte do que propriamente a qualidade da sua música. Durante os primórdios do Hip-Hop, os fãs de um artista só sabiam qual o seu aspeto no momento em que iam a um espetáculo do mesmo, no entanto, com o avançar da tecnologia e com a crescente capitalização do género, o foco principal passou da qualidade da arte para o aspeto do artista ou do produto no geral. A máscara representa assim uma rejeição dos standards do seu tempo e uma forma de os seus fãs se focarem na qualidade da sua arte, em vez de se focarem no sujeito que a cria.

Esta questão ganha uma nova dimensão ao saber que ao longo da sua carreira, MF DOOM foi acusado de ter contratado impostores para o substituírem em alguns concertos. É interessante porque para além de relembrar os fãs de que MF DOOM é acima de tudo um vilão, reitera o conceito central que está na sua génese: o mais importante é a música e a mensagem, e não o mensageiro.

Madvillainy: a magnum opus do vilão

Entre os muitos álbuns e colaborações que preencheram a vida de Dumile, o mais importante e conceituado foi, sem dúvida, Madvillainy, lançado em conjunto com o produtor americano Madlib, sob o nome de grupo Madvillainy, gravado ao longo de dois anos no seu estúdio em Los Angeles. O duo conheceu-se através de um amigo em comum e ambos afirmaram publicamente terem sentido uma conexão e sintonia praticamente imediata. Contudo, no início de 2003 o álbum inacabado foi leaked na Internet e a dupla perdeu a motivação para continuar, dedicando o seu tempo aos projetos pessoais. Acabaram por voltar a pegar no projeto mais tarde e lançaram-no oficialmente em março de 2004.

Regra geral, as letras escritas por MF DOOM vão buscar muitas das ideias presentes nos seus projetos anteriores mas exploram-nas de forma mais refinada e aperfeiçoada. O artista emprega o uso de várias técnicas avançadas de rima, como por exemplo rimas internas (quando a rima acontece no meio do verso em vez de no final) e holo rimas (quando uma sequência de palavras pode ser lida de duas maneiras diferentes, criando também significados diferentes), que tornam as suas letras exponencialmente mais interessantes de cada vez que as ouvimos. Sendo um vilão de banda desenhada, as letras continuam a ter o teor cómico que sempre tiveram, criando um projeto interessante mas ao mesmo tempo divertido de acompanhar.

Por baixo das letras, temos os instrumentais perfeitamente concebidos por Madlib, samplados de discos obscuros de vários cantos do mundo, desde o Brasil à Índia. À semelhança da lírica do álbum, à primeira vista, os instrumentais podem parecer pouco desenvolvidos mas o estilo da produção está muito à frente do de qualquer outro disco lançado na mesma altura, misturando elementos do jazz e do soul com batidas fortes e hipnóticas, sem deixar para trás o elemento de low fidelity que garante uma estética mais orgânica e mais humana ao álbum.

O mais impressionante em Madvillainy é que nenhuma das música tem refrão, algo que na altura em que foi lançado não era costume. Apesar desta diferença colossal, o sucesso foi imenso e o álbum é atualmente reconhecido como um dos álbuns de Hip-Hop mais importantes de todos os tempos e um clássico.

O legado

Feitas as contas, Dumile lançou um total de seis álbuns sob vários pseudónimos, seis álbuns colaborativos e nove álbuns instrumentais, todos eles peculiares e com uma sónica muito característica. Mas não foi apenas na produção de conteúdo musical que Dumile demonstrou user um master of his craft: o músico tornou-se quase um mito, uma lenda urbana que acompanhou muitos rappers (e músicos em geral) ao longo das suas carreiras. Artistas populares como Tyler, The Creator, Childish Gambino, Danny Brown, JPEGMafia, Joey Bada$$ e Earl Sweatshirt mencionaram-no em faixas ou mostraram ao longo da sua carreira um profundo respeito e adoração pelo vilão mascarado, provando a teoria de que MF DOOM é de facto o rapper favorito do teu rapper favorito.

Dumile demonstrou-se sempre sábio no que toca à produção artística. Em relação a momentos de menor inspiração, os chamados slumps, numa entrevista para a Red Bull Music Academy, quando questionado sobre este mesmo assunto, Dumile sugeriu que o que o ajuda não é insistir até conseguir mas sim dar um passo atrás e aproveitar o tempo com a sua família, porque é a partir dessas vivências que surge inspiração – o britânico naturalizado norte-americano sugeria viver primeiro porque só assim se consegue crescer e criar arte nova a partir de momentos dos quais não sabíamos ser possível tirar inspiração.

O génio de Dumile é incomparável, e o mundo perdeu de facto um mestre da música e da vida no geral. Podemos manter vivas as suas várias personalidades, tocando os seus álbuns e deixando-nos levar pelo mundo que criou para si e que abriu para nós.

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  • Pedro Caldeira

    Engenheiro Informático de profissão, Pedro Caldeira é um apaixonado por tecnologia e acima de tudo música. Escreve regularmente sobre temas relacionados com tecnologia disruptiva e sobre álbuns e artistas que o inspiram.

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