O lado feio de alguns e eu que não fiz queixa 

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O lado feio de alguns e eu que não fiz queixa 

Atualmente, uma vítima de abuso sexual tem até seis meses para apresentar queixa nas autoridades competentes. Eu demorei 8 meses até reconhecer que o que me aconteceu foi um crime de coação sexual, que não foi só uma noite desagradável em que dois homens me magoaram um bocado.

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Este artigo pode conter expressões ou retratar situações passíveis de desencadear reações nos leitores mais sensíveis. Se te sentes vulnerável ao tema, pondera a tua leitura.

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Quando os 57 minutos de viagem entre a minha casa e o Porto começaram a ser mais frequentes, o meu Pai fazia questão de me relembrar que não devia conduzir de bexiga cheia porque “pode haver um acidente e ela colapsa”. Eu confesso que nunca confirmei a veracidade clínica do que ele dizia quando ouvia o barulho das chaves, mas a verdade é que guardava essa informação com carinho. Naquela noite, no regresso de um jantar feliz de francesinha com as amigas, eu já não estava longe de voltar a casa, mas tinha mesmo de ir ao wc. Então fui. 

Sou habitualmente muito cautelosa quando estou sozinha, a exposição social a imbecis assim mo ensinou, pelo que o costume é avaliar bem a área antes de estacionar, levar as chaves no meio dos dedos só por descanso, preparar o telemóvel para uma eventual chamada imaginária de auto-defesa. Naquele dia, eu estava anormalmente desprevenida, e tudo o que queria era urinar sem pensar muito no contexto microbiológico que o wc atrás de uma bomba de gasolina implica. Tinha passado o dia sentada, achei que estacionar do outro lado da estação de serviço adjacente à bomba para “me fazer andar” seria sensato – primeiro erro. O telemóvel estava a carregar no carro e não o quis levar – segundo erro.

Urinar numa casa de banho daquele tipo é uma sequência curiosa para uma mulher: antecipamos o nojo, vemos se temos o lencinho porque não há papel, fazemos um agachamento baixo o suficiente para não nos molharmos, alto o suficiente para não tocarmos na cerâmica. Parece quase reveladora esta condição de fêmea, que até para urinar tem de se baixar.

O que não costuma acontecer nesta sequência é o barulho que eu ouvi e reconheci como perigoso quando fechei a porta. Vozes masculinas animadas, demasiado contentes, demasiado perto, capazes de acordar todos os meus alarmes internos. Cruzei a avaliação da indumentária dos dois e a informação que a rádio me tinha dado de um jogo de futebol entre dois clubes relevantes. Juntei o cheiro a cerveja, os olhos de predador de um, os olhos de bêbado do outro, e soube que a situação não me era favorável.

Quando era mais nova imaginava algumas vezes o quão terrível seria se isto viesse a acontecer, e perguntava-me como iria reagir. Quando na faculdade aprendi sobre a resposta fisiológica a uma situação de terror, falaram-me muito do “fight or flight” mas não do freeze. E nessa noite eu respondi ao meu eu de há uns anos, porque na verdade o que aconteceu foi que a resposta foi mista. Quando comecei a ser atacada não demorei muito a descobrir que não conseguia lutar e gritar ao mesmo tempo, portanto quando conseguia gritar, os meus agressores ganhavam terreno. Foi assim que me desfizeram o soutien enquanto me apalpavam e arranhavam, foi assim que me conseguiram rasgar as cuecas sem me tirar as calças. Então, gritar deixou de ser viável, porque eu me sentia no sítio mais vazio do mundo e porque eu sentia que tinha de lutar. 

Embora eu soubesse que a vantagem numérica era atenuada pelo facto de um dos indivíduos estar embriagado, ainda eram demasiados. Quando me largaram e foram tranquilamente para o seu Clio branco, eu não conseguia deixar de estar inundada pela sensação horrorosa de que só não tinha sido pior porque talvez não lhes apetecesse, ou porque ouviram alguma coisa que os assustou. 

Depois instalou-se o freeze, e eu fiquei demasiado tempo deitada no chão de um wc público, sem qualquer tipo de preocupação microbiológica, enquanto sabia que a minha boca sabia ao sangue da orelha de alguém que me queria fazer mal. 

A negação sobre o que aconteceu começou no momento em que voltei a entrar no carro. Escolhi a rádio mais barulhenta que encontrei, aumentei o volume e segui caminho a recordar-me de tudo o que tinha planeado fazer no dia seguinte. Tentei não acordar ninguém enquanto tomava um banho fervente e escondi a roupa interior dentro de umas botas com a intenção de a deitar fora no dia seguinte – encontrei-a meses depois. 

Uns dias depois contei o que se tinha passado ao meu namorado da altura, uma vez que ele viu os meus hematomas e arranhões. A reação dele foi muito distante, e o máximo que disse sobre o assunto foi “bem, pelo menos tiveste sorte que não te aconteceu nada”. 

Essa é a ideia de violência sexual de muita gente, a ideia de que se não houver penetração não conta e não aconteceu nada. E eu própria entreguei-me a essa ideia, talvez numa tentativa de digerir o sucedido. Umas semanas depois, comecei a ter mais consciência do impacto que o episódio teve em mim, talvez potenciado pela distância que criou no meu relacionamento, a forma atrapalhada com que a pessoa passou a rejeitar qualquer tipo de intimidade comigo, e como acabou comigo por SMS numa segunda de manhã.  Foi impossível não achar que estava relacionado com aquela noite, foi impossível não achar que aqueles dois homens me tinham “partido” para sempre, e que alguém me ganhou repulsa repentinamente pelo que me aconteceu. Foi aí que procurei ajuda e que, devagar, aquela noite passou a pesar cada vez menos nos meus dias. 

Atualmente, uma vítima de abuso sexual tem até seis meses para apresentar queixa nas autoridades competentes. Eu demorei 8 meses até reconhecer que o que me aconteceu foi um crime de coação sexual, que não foi só uma noite desagradável em que dois homens me magoaram um bocado. Agora sei que foi a noite que me encheu de culpa de existir, que me encheu de vergonha pela facilidade com que alguém invadiu os meus seios com o top que eu estava a usar, foi a noite que reinou nos meus pesadelos durante anos, é a noite que ainda me assombra quando fico sobressaltada com o mínimo dos mínimos.  

A impossibilidade de apresentar queixa após os 6 meses seguintes a um episódio traumático contribui em muito para o manto de silêncio estatístico que esconde os milhares de pessoas que se arrastam na negação, na culpa, e no medo, e não fazem queixa a tempo. Os crimes sexuais atingem principalmente mulheres e crianças, e não deveria estar apenas na vítima a hipótese de apresentar queixa. Os crimes de violação, de coação sexual e de abuso sexual deveriam ser finalmente considerados crimes públicos, também para que possam ser claramente denunciados por outros que não a vítima, que tantas vezes não está em condições de o fazer. 

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Associação de Mulheres Contra A Violência

213802165 / ca@amcv.org.pt

APAV

116 006 / apav.sede@apav.pt/ apav.lisboa@apav.pt

CARE | Rede de Apoio a Crianças e Jovens Vítimas de Violência Sexual

care@apav.pt

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Nota: Dada a sensibilidade do tema, a autora do texto pediu anonimato pelo que este artigo não é assinado.

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