Terry Reintke: “A declaração da UE como Zona de Liberdade LGBTI é definitivamente uma conquista”

Terry Reintke: "A declaração da UE como Zona de Liberdade LGBTI é definitivamente uma conquista"
DR/ Cornelius Gollhardt

Terry Reintke: “A declaração da UE como Zona de Liberdade LGBTI é definitivamente uma conquista”

Terry Reintke, eurodeputada, co-Presidente do Intergrupo LGBTI do Parlamento Europeu e uma das vozes com mais projeção na luta por direito fundamentais para mulheres e pessoas LGBTQI+, falou com o Shifter sobre o estado da União Europeia, os casos da Polónia e da Hungria e o que falta fazer.

Há pouco mais de uma semana, no passado dia 11 de março, o Parlamento Europeu viu acontecer uma medida histórica na luta pelos direitos LGBTI. A União Europeia foi declarada uma Zona de Liberdade LGBTI, com 492 votos a favor, 141 votos contra e 46 abstenções. Esta medida é o reflexo de vários anos de trabalho, pela jornada do Intergrupo LGBTI do Parlamento Europeu, e uma resposta às auto-declaradas Zonas Livres de Ideologia LGBT (LGBT Free Zones) que começaram a surgir na Polónia há cerca de dois anos — e também a Câmara Municipal de Lisboa já reagiu no mesmo sentido, assumindo-se como Zona de Liberdade num nível local. Neste grupo de trabalho, onde se encontram 142 membros do Parlamento Europeu (MEPs), e cujo coordenador é o português Miguel Chambel, uma das vozes com mais projeção é a da co-presidente Terry Reintke

Foi uma das eurodeputadas a vestir as cores da bandeira LGBTI no Parlamento Europeu, e vestiu-se também com o guarda-roupa de Handmaid’s Tale. Com ações simbólicas como estas, e através das suas palavras no Parlamento, tem vindo a lutar para que a União Europeia seja um lugar seguro para as mulheres e pessoas LGBTI, usando o lugar e a voz que tem para amplificar histórias reais que se passam em diferentes Estados-Membros. Desde 2014, ano em que se juntou ao Parlamento Europeu pelos Verdes/EFA, Reintke trabalha todos os dias contra retrocessos históricos. 

Terry nasceu e foi criada em Gelsenkirchen, mas mudou-se para Berlim para estudar Ciência Política no Otto-Suhr-Institut, onde acabou por fazer uma tese cujo tema foi “ONGs locais e violência sexual nos conflitos dos Balcãs”. A luta pelos direitos humanos sempre esteve no centro do que queria fazer, mesmo que no princípio de tudo não tivesse consciência de que os direitos adquiridos ao longo da História lhe poderiam vir a ser retirados. Hoje sabe que tudo o que temos como garantido pode, um dia, encontrar-se na iminência de voltar a não ser um direito que nos pertence. É contra esse retrocesso que luta, e é por isso que uma das maiores preocupações que tem enquanto eurodeputada é a atual situação política da Polónia e da Hungria, ainda que ache importante que se olhe e reflita sobre a situação de todos os Estados-Membros.

Reintke tem sido, aliás, uma figura central para que os temas quentes não caiam no esquecimento, e uma referência para ativistas polacos e húngaros que vêem na sua resiliência um motivo para ter esperança. A eurodeputada alemã não está sozinha, nem tão pouco tem conseguido estes avanços significativos de forma individual — e faz questão de o reforçar sempre que mencionamos o seu trabalho. Estar sozinha nunca é, nunca foi, uma motivação para si. É com e pelos outros que dá a cara e a voz no Parlamento Europeu.

Combinámos uma entrevista por uma plataforma de videoconferência, tendo em vista entender melhor o que representa, afinal, esta declaração da União Europeia enquanto zona de liberdade para pessoas LGBTI e, a certa altura, antes de começarmos a gravar, Terry confessou que já está “a trabalhar nestes assuntos há anos”. Já desde 2008, quando integrou o quadro executivo da Juventude Verde Alemã, com apenas 21 anos, o que a movia eram os mesmos princípios por que se move agora. Em 2021, com uma pandemia e a condição instável de muitas pessoas LGBTI e mulheres por toda a Europa, tem ainda mais motivos para querer ser agente de mudança. E apesar de saber que a mudança nem sempre se faz num ano, muito menos num mês, está otimista — é a própria que o repete por várias vezes ao longo da entrevista, com um sorriso nos lábios e no olhar que o confirmam. A partir de Bruxelas, desvendou o que espera desta resolução, lembrou que virar as costas nem sempre é solução e que as ações solidárias têm um impacto efetivo. Porque “esta solidariedade é algo que nos torna a todos mais fortes, no fundo”.

Shifter – Terry, dizias-me há pouco que já trabalhas nisto há muitos anos e vi que hoje escreveste nas tuas redes sociais que por vezes te sentias frustrada porque as coisas acontecem demasiado devagar na política, mas que depois pensas nas mulheres que lutaram para que possas estar onde estás. Na semana passada a União Europeia declarou-se uma Zona de Liberdade LGBTI, o que imagino que tenha sido uma conquista. Mas o que é que isso significa ao certo, o que será diferente de agora em diante?

Terry Reintke (T.R) – Bem, termos conseguido isto é definitivamente uma conquista, e conseguimo-lo com uma grande maioria no Parlamento Europeu, o que até foi surpreendente para nós. Quase todos os EPP’s (European Political Parties), até dos partidos de centro-direita, votaram a favor desta declaração, o que é um bom sinal. É algo que acho que nos pode deixar optimistas em relação ao futuro, sabermos que estamos a progredir. Há coisas que estão a mudar para melhor — e já fomos assistindo a muitas mudanças, e eu acho que podemos focar-nos nisso e extrair energia daí. Ao mesmo tempo é um primeiro passo muito simbólico – e acho que também é isso que a resolução pretende – porque obviamente não tem nenhuma consequência política direta, e não significa que a Comissão [Europeia] irá imediatamente contra as LGBT Free Zones. Também não quer dizer que temos, de imediato, uma maioria em propostas legislativas relacionadas com os direitos LGBTI, como por exemplo o reconhecimento mútuo ou uma melhor luta contra o crime de ódio. Há duas coisas que queremos com esta resolução: a primeira é enviar uma mensagem clara à comunidade LGBTI por toda a União Europeia, mostrando que no Parlamento Europeu estamos do seu lado; a segunda não tem apenas que ver com políticas europeias, mas também com políticas nacionais, regionais e locais para nos mantermos em contacto com políticos e percebermos o que podem fazer para enaltecer os direitos LGBTI. Penso que este é um ponto de partida muito importante porque temos visto que o outro lado se tem organizado muito melhor e estabelecido relações ao longo dos últimos anos, atacando os direitos LGBTI. Não fizemos o suficiente para promover e para avançar com direitos fundamentais, como os direitos LGBTI. E é isso que anseio agora: que com esta resolução consigamos fazê-lo, e que consigamos também trazer uma espécie de momentum para este debate.

Shifter – Não tens sido a única a trabalhar pela liberdade LGBTI na Europa, mas tens sido uma das vozes mais ouvidas e amplificadas no Parlamento Europeu em tópicos relacionados tanto com a comunidade LGBTI, como com os direitos das mulheres. Apesar de seres alemã – ainda que isso não seja um obstáculo para as tuas preocupações pessoais e enquanto MEP -, olhar para o que se está a passar na Polónia e na Hungria vai, a certo ponto, contra o que sempre acreditaste que era o papel da União Europeia?

T.R. – Devo dizer que quando estava a crescer, nunca acreditei que pudéssemos voltar atrás novamente. Acho que sempre tive uma espécie de ilusão, ou talvez confiança, de que os direitos não me poderiam ser retirados e que, enquanto mulher, seria sempre melhor representada, teria mais possibilidades, teria mais direitos com o decorrer da História, porque se os tínhamos conquistado, só teríamos de os pôr em prática. Com os direitos de minorias, como é o caso da comunidade LGBTI, pensava um pouco da mesma forma. O que se está a passar agora na Hungria e na Polónia lembra-nos que esse não é o caso e que obviamente as coisas podem regredir. O mesmo acontece contra assuntos à escala da União Europeia, em que já tínhamos chegado a um acordo. Isto não é algo que apresentamos como sendo um problema já salvaguardado pelos Tratados; por isso, sim, estou negativamente surpreendida com este retrocesso. Ao mesmo tempo, acho que nos pode dar a possibilidade de nos lembrar quão importante é lutarmos por determinadas coisas e, através disso, mobilizarmos pessoas para efetivamente fazerem algo que tenha em vista o direito democrático; fazerem algo que vá ao encontro dos valores fundamentais que a União Europeia representa. É isso que espero que esta resolução, mas também uma série de outros passos que estamos a dar, possa fazer. Que possamos dar a volta e depois seguir em frente.

Terry Reintke no Parlamento Europeu
EP plenary session- The de facto abortion ban in Poland

Shifter – Isto leva-nos a outro ponto sobre o qual gostava de conversar contigo. Ainda que a Polónia e a Hungria estejam a ir contra valores de direitos humanos que podem, ou devem, ser valores da União Europeia, pensar numa saída é uma possibilidade ou é uma espécie de linha vermelha Europeia? Este é um tema tabu?

T.R – Na verdade, os Tratados não prevêem que os estados membros possam ser expulsos, por isso o que podemos fazer é o procedimento do Artigo 7, que tira direitos de voto a estados membros. Mas neste momento, como sabes, os procedimentos do Artigo 7 estão a ser postos em prática contra a Hungria e contra a Polónia e, para finalizar esses processos, teríamos de ter unanimidade no Conselho por parte de todos os outros estados membros. Enquanto esses processos estiverem em andamento, é bastante improvável que um deles seja finalizado. Mas isso é algo que deploramos e, obviamente, continuamos a querer seguir em frente com esses mesmos processos. Perguntam-me frequentemente “a Polónia não devia simplesmente sair da União Europeia?” porque claramente não se baseiam nos Tratados e nos valores que a UE defende, e por aí fora. O que respondo às pessoas quando me fazem essa pergunta é que julgar um país apenas pela posição atual do seu Governo é algo que acho que devemos evitar fazer. Quando olhamos para a Polónia e para a Hungria, vemos que há milhões de pessoas que realmente se opõem a estes retrocessos na democracia, no Estado de Direito e nos direitos fundamentais. Para essas pessoas, seria um completo desastre se os respetivos países saíssem da União Europeia. Por isso, acho que em vez de os tentarmos afastar ou tornar as coisas mais difíceis para que permaneçam, o que devemos fazer é apoiar as pessoas dentro dos países para defenderem os valores europeus e trabalhar com elas de perto porque ainda vivemos numa democracia e nenhum Governo é eleito para a eternidade. As coisas podem mudar. E tenho muita esperança de que as coisas na Hungria e na Polónia mudem.

Shifter – Pergunto-te isto porque, de facto, há pessoas LGBTI que têm alertado para esse outro lado, e que têm medo que essa saída aconteça, porque se sentiriam muito menos protegidas. Mas quais são as possibilidades para ajudar pessoas LGBTI, de facto, e ao mesmo tempo condenar esses governos? Como é que o Estado de Direito pode ser efetivo e reforçado? 

T.R. – Há várias coisas que gostávamos de ver acontecer. Obviamente, com esta resolução surge uma expectativa e uma onda de pressão política que queremos levar para a Comissão Europeia, mesmo que nem tudo esteja escrito de forma explícita [na resolução]. Tudo começa com este debate sobre os processos de infração; gostávamos que a comissão iniciasse um processo de acordo com a Polónia, tendo na base as “Zonas Livres de Ideologia LGBT” — o Parlamento Europeu já o pede há meses. Gostávamos de ver mais ação, também no que diz respeito a outras áreas em que reforçar a legislação que existe é realmente necessário e onde deixe de haver incumprimento. Mas queremos ir além disto e queremos que a Comissão proponha mudanças legislativas — e aí acho que podemos ser otimistas porque com a estratégia de igualdade LGBTI, as propostas serão feitas, penso que ainda no decorrer deste ano, no que toca a assuntos como o mútuo reconhecimento de documentos, como certidões de nascimento ou certidões de casamento ou união de facto, e para uma melhor proteção de pessoas LGTBQI+, mas também de outras pessoas que sejam alvo de crimes e discurso de ódio. O primeiro passo para que a legislação seja real é propô-la e, como sabes, o Parlamento Europeu não tem o direito de iniciar [esses processos]. Estamos felizes pelo facto de a Comissão querer propor algo que diga respeito a isso, e que vá além disso também. Acho que às vezes isso é esquecido porque estas são, provavelmente, as lutas políticas quentes que se podem fazer. Mas penso que, além disso, enquanto intergrupo no Parlamento Europeu, tentamos sempre olhar para como podemos apoiar a comunidade no terreno. Essa ajuda prende-se com apoio político, tentar cobrir assuntos que estão nas suas preocupações com esta resolução… mas há muitos outros exemplos do que podemos fazer enquanto MEPs, inclusive financeiramente — podemos ver que muitas organizações em países como a Polónia e a Hungria não têm recebido fundos nacionais e, para eles, é mais difícil agir agora. O que queremos ver é um equilíbrio, dirigindo dinheiro europeu diretamente a organizações que estão, por exemplo, a lutar pelos direitos LGBTI, pelos direitos das mulheres, por direitos humanos, no geral. Vamos ter esse programa de direitos e valores enquadrado no próximo Multiannual Financial Framework (MFF), o que acho que é um grande passo para permitir esse tipo de trabalho na sociedade civil. E isso tem sido absolutamente imprescindível nos últimos anos nestas batalhas contínuas na Hungria e na Polónia.

Shifter – Há pouco usaste a expressão “ideologia LGBT”, que é frequentemente utilizada na Polónia, mas não só, contra a comunidade LGBTI. Lembro-me de ler, há uns tempos, que quando Robert Biedron foi Presidente da Câmara os locais gostavam muito dele e que isso, de alguma forma, humanizou a comunidade LGBTI. Sei que assumir publicamente que és parte da comunidade LGBTI nem sempre é óbvio e não faz sentido para toda a gente, mas quão importante achas que é essa tomada de posição não só para que as pessoas LGBTI se sintam visibilizadas, mas também para humanizar a chamada “ideologia”?

T.R. – Absolutamente! Toda esta questão de nos assumirmos é muito debatida na comunidade, também. Para mim, da minha experiência e pelas experiências de grande parte das pessoas à minha volta, é algo que é bastante libertador e que nos dá espaço; que nos dá uma sensação de liberdade que não temos quando estamos “no armário”. Mas também sei que para algumas pessoas é mais fácil do que para outras. É claro que a minha experiência se relaciona com a minha posição, o background de onde venho, a minha aparência, e que tudo isso torna a tomada de posição mais fácil para mim. Acredito que dar esta visibilidade e ter este nível de representatividade nos corpos de decisão política, bem como noutras áreas da sociedade como os media, na academia, e outros, é bastante importante, especialmente em tempos em que governos como o da Polónia, por exemplo, nos tentam desumanizar e pintar uma imagem de que somos uma ameaça para a família, para o Cristianismo, para a sociedade. Na Hungria, neste momento, está a haver uma campanha em curso cujo mote é “família é família”, que tenta passar a mensagem de que estamos a ameaçar as famílias quando, na verdade, são as nossas famílias que estão a ser ameaçadas. É exatamente o oposto do que os políticos autoritários estão a dizer. Por isso é tão importante humanizar as nossas histórias e ter isto presente, de alguma forma, no debate político para mostrar que nós não somos uma ideologia, nós não somos uma ameaça. Somos seres humanos e queremos ter igualdade; queremos ser livres.

Shifter – A representatividade LGBTI na Polónia tem sido bastante positiva, e há muitos jovens que de facto vêem essxs políticxs como um exemplo.  Mas ainda que essa presença exista e que algumas coisas positivas possam ter acontecido nos últimos tempos, como a absolvição de Elżbieta, Joanna e Ana, as três ativistas que foram julgadas após terem usado uma imagem religiosa numa manifestação LGBTI, as coisas têm escalado noutros sentidos — Marta Lempart pode ser condenada até 8 anos de prisão e os media públicos são altamente controlados pelo Governo. Sentes que, olhando para tudo isto, as gerações mais novas começam a olhar com menos esperança para a União Europeia e para o “sonho europeu”? 

T.R. – Penso que também vemos o que está a acontecer como uma espécie de luta, que é mais intensa e dramática em países como a Polónia e a Hungria, mas existem tendências semelhantes praticamente em toda a União Europeia. Na Alemanha, por exemplo, existem narrativas que dizem que quando alguém de um grupo minoritário chega a uma posição de poder, isso irá desestabilizar a sociedade. Mas acredito que irmos contra isso e contarmos a história inversa num nível europeu, baseada em valores em que já concordamos todos, pode fazer a diferença. Todos os membros de todos os países membros da União Europeia concordaram com esses valores, e eu acho que essa mensagem é muito forte. Podemos olhar para os protestos das mulheres na Polónia, mas também para os da comunidade LGBTI; esta solidariedade é algo que nos torna a todos mais fortes, no fundo. Por isso, acredito que contrariando essas histórias, naturalmente no que diz respeito ao debate nacional, com histórias pessoais, com argumentos políticos, mas também com esta forte mensagem de solidariedade, é uma das nossas maiores forças. Isto tem mostrado que na Polónia, mas também numa série de outros países – e, certamente na Alemanha – é um caminho importante. Quando falamos de direitos LGBTI, eu não venho propriamente de um estado membro que está muito à frente, onde possamos falar de um espírito progressista. É por isso, também, que enquanto intergrupo vamos tentar estabelecer relações entre diferentes comunidades e diferentes vertentes, de diversos Estados-Membros, com múltiplos backgrounds, mais do que fizemos no passado. Porque a União Europeia, em muitos dos Estados-Membros, tem tido uma influência muito positiva contra a descriminação, por exemplo. Queremos continuar essa história não só na Polónia e na Hungria, mas em todos os países.

via GREENS/EFA

Shifter – Esse trabalho pode também passar por criar medidas de ação afirmativa? Há países em que esse tipo de medida tem permitido um encontro com uma História que nem sempre é contada nas escolas e, consequentemente, um encontro com a própria história de pessoas que não se sentem representadas. 

T.R. – Sem dúvida. Há diferentes camadas no trabalho que queremos fazer, dependendo da parte da sociedade para que estamos a olhar. Há lugares e campos jurídicos em que temos muita competência e podemos legislar. E, por exemplo, uma das coisas em que eu realmente gostaria de legislar mais prende-se com uma política de combate à descriminação, de modo a conseguirmos ultrapassar a linha da directiva horizontal de igualdade – que já foi suficientemente secundária, frequentemente por mais de 10 anos – para que possamos proibir a descriminação em diferentes campos em todas as esferas da sociedade, e não apenas no mercado laboral. Essa proposta é muito concreta quando falamos, por exemplo, de educação. É verdade que a União Europeia não tem competências diretas aí, mas podemos sempre fazer alguma coisa, como por exemplo promover mais trocas para que Estados-Membros possam aprender uns com os outros as suas melhores práticas, porque penso que em alguns países as coisas estão bem mais avançadas do que noutros – pensando que a Alemanha está na parte inferior da escada e que podemos incentivar o progresso fazendo políticas progressivas. Com o financiamento do Coronavírus que virá agora, vamos tentar começar já a tentar pôr isso em prática; estamos a incluir algumas condicionalidades, por exemplo, para que os Estados-Membros sejam incentivados a investir esse dinheiro em coisas que contribuam para uma sociedade mais democrática. Uma das condicionalidades que queremos ver é que exista uma forte aplicação do orçamento de género, para que o dinheiro não seja gasto apenas em áreas onde a maioria dos trabalhadores são homens, e que acabe por os beneficiar, mas também em áreas onde existem mais mulheres. No fim, isso pode ser mais equilibrado. Eu sei que o dinheiro já tem vindo a ser gasto de diversas formas, claro, mas é bom fazer este exercício e ir vendo o impacto de género em diferentes jovens, homens e mulheres. E isto pode ir mais além, com debates políticos também em estados membros em que o debate não tenha avançado muito até agora.

Shifter – No que toca à educação, também em Portugal houve um debate muito recente em torno de uma disciplina de cidadania, onde os tais “valores de família” foram um dos tópicos em cima da mesa. Há sempre alguma resistência.

T.R. – É muito importante dar-se acesso às pessoas a este tipo de conhecimento dizendo também que sim, as pessoas queer existem em todo o mundo, porque é algo que até aos nossos 25 anos, mais ou menos, às vezes crescemos a achar que não é uma parte normal da vida. As pessoas têm diferentes orientações sexuais, as pessoas têm diferentes identidades de género — e está tudo bem quanto a isso. Vivemos em sociedades diversas, e isso é normal. Agora só temos de garantir que toda a gente é tratada de igual forma e integrar estas questões nos currículos escolares. Para mim, isso é bastante óbvio. Também na Alemanha esses temas têm sido discutidos, e as políticas educacionais são tratadas a um nível regional, e começou a haver um debate sobre ter mais histórias diversas no currículo escolar que despertou revolta, como se fosse um ultraje. Esta é uma realidade que enfrentamos muitos estados membros da União Europeia e é por isso que com esta resolução também queremos contar estas histórias e dizer que as pessoas queer são uma parte completamente normal e integrante das nossas sociedades. Isto não é algo que deva ser mencionado; é preciso que seja, mas não devia ser. Com esta resolução também queremos mostrar que não queremos direitos especiais, que não queremos um tratamento especial. Só queremos que a legislação, a violência e todos os problemas criados em torno de nós sejam resolvidos de forma democrática. Queremos pôr em prática o que já está escrito em todas as Constituições e em todos os Tratados da União Europeia, e isso significa que todos os seres humanos têm direitos iguais, que todos os cidadãos merecem os mesmos direitos. Penso que é precisamente isso que está por trás desta resolução. Trazer isso para a mentalidade de algumas pessoas é necessário, mesmo que não devesse ser.

Shifter – O que é que nós, enquanto cidadãos europeus, podemos fazer para ajudar? Qual pode ser o papel de outros países europeus para exigir o cumprimento desses direitos por parte de quem não está a cumprir?

T.R. – Bem, como te tinha dito, vamos agora tentar começar o debate em torno de ações concretas e legislação, e o que quer que possa contribuir para essa reflexão e para a promoção dos direitos LGBTI na União Europeia é válido. Mas falar sobre o assunto e sensibilizar as pessoas – como falávamos há pouco sobre políticos abertamente LGBTI – é importante. Penso que trazer este tópico, partilhar nas redes sociais, conversar sobre o assunto com amigos e família, e depois, claro, uma vez por outra ir a uma demonstração do Orgulho, votar, usar tudo o que estiver ao nosso alcance para que as pessoas sintam que são – não apenas sintam, mas sejam mesmo – protegidas de violência e descriminação. São coisas que todos podemos fazer todos os dias. E com isso, espero que haja uma mudança e que possamos contrariar este retrocesso que está a acontecer agora. Depois, poderemos realmente focar-nos em como seguir em frente e tornar as nossas sociedades mais igualitárias e livres.

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  • Carolina Franco

    Carolina Franco tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e está a completar mestrado em Antropologia - Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.

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