“A imigração é um labirinto. Um labirinto de concreto cujo céu não se vê.”

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“A imigração é um labirinto. Um labirinto de concreto cujo céu não se vê.”

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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Pré-publicação do prefácio de "V̶O̶L̶T̶A̶ PRA TUA TERRA: Uma antologia antirracista/antifascista de poetas estrangeirxs em Portugal" da autoria da curadora da coleção, Manuella Bezerra de Melo

A imigração é um labirinto. Um labirinto de concreto cujo céu não se vê. Seguir em frente é o único sentido e até mesmo voltar significa seguir em frente. Decidir tirar os pés do próprio chão, cujo solo é conhecido, cujo terreno está medido, onde se planta, onde não se planta, onde é possível colher ou não, é um ato de coragem. Perguntam então porque se faz isso, se é um ato tão duro consigo mesmo. Às vezes a gente conhece o próprio solo, mas está exausto da espera pela colheita. Às vezes, ainda que se saiba sobre o teor do solo, da terra abaixo do seu corpo, é preciso que o grão brote, e se não brota, a sobrevivência leva os humanos, que têm pernas, a se movimentarem. 

Assim constituíram-se o mundo, as sociedades, as civilizações. Homens e mulheres com pernas caminharam, deslocaram-se para onde já estavam deslocados os seus sonhos. Uma vez dentro do labirinto, uma vez que é feita esta escolha, não há mais volta a dar. Algumas pessoas passam uma vida inteira no mesmo lugar, no mesmo sítio, na mesma aldeia. É respeitável, é uma escolha. Mas são as que se movimentam aquelas que transformaram a humanidade, as pessoas cujo deslocamento de si mesmo promoveu o deslocamento do eixo da Terra. Quando alguém se desloca ela transforma tudo dentro e também à sua volta. O movimento, o deslocamento em si, não é danoso, pelo contrário, é importante e produtivo, desde que isso não leve a um encontro danoso com a alteridade. E é sobre alteridade que também queremos falar. 

Nós, estes poetas estrangeiros que vos falam, viemos dos mais variados países. Nós estamos em Portugal, somos residentes por uma série de motivações conhecidas apenas por cada um de nós, assim como os quase 600 mil outros imigrantes que vivem aqui. Portugal, este país de território pequenino na ponta da Península Ibérica, é pela história conhecido por sua essência exploratória, curiosa e desbravadora. As míticas personalidades históricas portuguesas conquistaram o mundo para a sua coroa, sua monarquia na altura poderosa, vigorosa, construíram uma imaginária nação gigantesca. Imaginária porque falamos aqui sobre imaginário mesmo, sobre como as narrativas são capazes de produzir verdades absolutas que talvez não sejam assim tão verdadeiras como esperávamos que fossem, ou que sejam somente uma parte da verdade. Estamos falando de algo que tem início em um tempo remoto, que parece que não se vê neste agora. Grandes navios que atravessam oceanos e lutam contra monstros no caminho, mas que trazem de volta riquezas e desenvolvimento. Guerreiros bravos que ocupam terras de homens que são julgados inferiores — e delas e deles se apropriam, como coisas. A épica camoniana, além de muito boa literatura, tem também uma função clara, instrumentalizada pelo poder: fortalecer a ideia da glória portuguesa e honrar Dom Afonso Henriques, “O Conquistador”, primeiro rei de Portugal, símbolo máximo de onde tudo isso começou, e cuja continuidade vê-se por todo lado, pelas ruas portuguesas, nas lojas de souvenir ou tatuadas na pele de seus nativos. Em Guimarães, norte de Portugal, por exemplo, um breve passeio no centro histórico pode ser um bom campo de estudo. A cidade vibra na glória de Dom Afonso, do turismo ao futebol, glória que se multiplica por todo terreno do antigo condado portucalense. 

É desde este país que falamos. Gente acolhedora, conversadeira, que gosta de aproveitar a vida, gente curiosa e sim, de certo, muito valente e altiva, mas gente que em nome de um patriotismo quase nocivo impede-se em ver que a própria moeda tem muitos lados. E o país inteiro mora no corpo deste grande paradoxo. O mesmo imaginário conquistador que sustentou a rica nação por longos períodos também é o grande responsável por desumanidades em outras nações, e manteve a posse de muitas colônias até um dia desses, com a derrota do Estado Novo e o 25 de abril em 1974, ocorrido após um longo período de guerra colonial. Falamos de muito pouco tempo atrás. Todos os que cá vivem conhecem quem esteve na guerra, tem um avô que morreu na guerra ou é um nascido na colônia retornado após a independência. É uma história tão triste quanto viva, que caminha pelas ruas com uma pistola a atirar nos migrantes não convidados a cá estarem.

Não há nada de passado no Portugal colonizador, não há nada de superado nem aqui e nem em nenhuma das antigas colônias portuguesas que hoje, em sua vasta maioria, gozam de condições periféricas, precárias na economia e de extrema dependência política e diplomática em relação aos países do norte global. Todas estas questões são construtoras da identidade do português contemporâneo, o controverso português que consegue ser tanto o do Saramago, do Lobo Antunes, quanto o do Eça de Queirós ou do Almeida Garrett. O português do Camões. Com isso, nosso estrangeiro retorna ao labirinto. Está aqui, vive aqui, é aqui que constrói uma nação, mas é permanentemente recusado, mandado embora. Do mais negro ao mais branco, do mais velho ao rapazote, “VOLTA pra tua terra” é recorrente e cortante. Esperamos que esta antologia não fira aos portugueses, principalmente aqueles que sabem o quanto é necessário tratar do passado para afinal encontrar o bom futuro. São muitos os que lutam ao nosso lado, que percebem a necessidade de drenar a ferida colonial ainda tão arregaçada, são muitos os que percebem que um país se constrói com todos, sem distinção. Que a fronteira é um lugar imaginário, tão imaginado quanto todos os mitos que levam alguém a acreditar que há algo nele de superior ,ou a acreditar que houve bons colonizadores, ou que ela, a colonização, é um favor da civilização ocidental ao mundo. Mas assumimos o risco. Dizer pode ferir, mas feridas não desaparecem quando fingimos que ela não está lá. 

É justo que se diga que tal efervescência conservadora portuguesa mais recente não insurge do nada, e nem mesmo sozinha. Desde a revolução de 25 de abril, as vozes silenciadas do fascismo tinham muito engasgado. A derrota do Estado Novo lhes desceu como um sapo pela garganta, mas nunca foi totalmente digerida. O assunto tornou-se motivo de uma longa ruminação. A ascensão de Donald Trump nos Estados Unidos lhes ofereceu, afinal, um porta-voz destes rancores da derrota guardados há algumas décadas. Não foi exclusividade da península o eco gerado. Mas o crescimento do fascismo à portuguesa tem evidenciado, em especial, o quanto o colonialismo está mal resolvido, exaltado quando deveria ser rechaçado, e como, dentro deste território, se tornou uma forma de expressão deste fascismo contemporâneo que ainda estamos todos tentando compreender. De acordo com o último European Social Survey (ESS) de 2018/2019, um dos mais respeitados inquéritos europeus, 62% dos portugueses manifestam racismo. Esse índice é facilmente sentido nas ruas, é um incômodo constante aos que vivem e trabalham em terras portuguesas. Recentemente, uma prestigiada universidade teve os muros pixados com incitações de ódio contra estudantes brasileiros, nada exclusivo, posto também os insultos constantes vivenciados pela população de etnia cigana, um dos alvos favoritos da nova extrema-direita portuguesa que prolifera notícias falsas com o objetivo de atingir a moral desta comunidade. Os crimes de cunho racial têm sido recorrentes contra negros e negras, principalmente, cuja alteridade é impressa na pele de forma mais evidente, a exemplo dos casos do estudante universitário cabo-verdiano Luís Giovani dos Santos, assassinado por espancamento em Bragança (mesma cidade que em 2003 promoveu protesto contra a presença das mulheres brasileiras acusadas de seduzirem os maridos das mulheres portuguesas e destruírem as famílias. Não, você não leu errado, foi isso mesmo que aconteceu), e a execução do ator Bruno Candé por um ex-combatente na Guerra Colonial, que antes de matá-lo proferiu insultos do gênero “Fui à cona da tua mãe e daquelas pretas todas, violei a tua mãe e o teu pai também”, “Levas com a bengala, preto de merda”,Tenho armas do Ultramar e vou-te matar” e a tão conhecida e famigerada “Volta para a tua terra, preto, tens a família toda na sanzala e também devias lá estar”. Bruno, cuja ancestralidade da Guiné estava cravada, era , curiosamente, português, nascido e criado em Chelas, morto em Moscavide enquanto o mandavam VOLTAR. Perguntamos, portanto, angustiadamente, a que terra devemos voltar? Em que terra deveríamos estar que não aquela onde estamos agora? A quem pertencem estas terras todas? Os que nos mandam voltar à nossa terra serão os mesmos que um dia a ocuparam violentamente?

Dos mais extremos até o mais subtil preconceito, o estrangeiro em Portugal, está preso nesse labirinto na companhia de insultos e desdém, de pré-julgamentos quanto à sua idoneidade que nascem exclusivamente por serem quem são, dos estereótipos que ajudam a manter a hierarquia da superioridade colonial; homens brasileiros são violentos ou malandros, mulheres brasileiras são prostitutas ou vulgares, pretos são pretos, oras, deviam existir para servir e não mais que isso, para os ciganos, sapos na porta para espantá-los, latinos são um braço europeu, uma extensão do corpo, ou seja lá de onde você venha, você não deveria ter vindo, não deveria estar aqui, mas já que está, agora vai aprender a falar português corretamente, porque afinal o que falas é outra coisa, uma coisa errada. E podes até mesmo ter doutoramento em letras e literatura, segues a ser um colonizado analfabeto e ignorante para qualquer português, mesmo que ele nem tenha completado o quarto ano primário. 

Por isto, esta antologia parece ser pra nós uma luz no labirinto. Indica o caminho que devemos seguir, indica que não paralisaremos, não amansaremos, não seremos obedientes e assimilados, não viemos aqui para servir ao português, mas ao País. E concluímos que fortalecer Portugal é parar de esconder a ferida de Portugal. Tratar da ferida pode doer. Descobrir onde dói, drenar, remediar, coser, olhar pra ela constantemente. Fingir que não está lá é deixá-la infectar todo o corpo. Nossa função para fortalecer este país é dizer as coisas incômodas, fazer as perguntas difíceis. Porque queremos estar aqui, mas aqui ou em qualquer lado, não desejamos ser o que não somos, não achamos que precisamos deixar de ser quem somos para cá estar, mas achamos que tornamos Portugal melhor na sua essência da diversidade. Sabemos nós que este pequeno terreno na ponta da península ibérica, o que ele é hoje, é resultado de populações outras que transitaram, caminharam, usaram seus pés e realizaram esta terra. Quantas etnias passaram por aqui? De quantos sangues é feito o sangue português, entre Celtas, Romanos, Germânicos e Mouros? Quantos portugueses se foram, fincaram seus pés em outros territórios para assim construírem (e constituírem) outros mundos? Há dados que estimam mais de cinco milhões de portugueses espalhados pelo mundo (a maioria que partiu é população economicamente ativa, jovens e adultos em idade reprodutiva, deixando no país os idosos e inativos e incontáveis postos de trabalho em aberto). A história nos conta que todos os sangues são compostos de sangues múltiplos e a compreensão de que não é o trânsito em si o problema, mas o confronto com outras realidades, talvez seja primordial para falarmos sobre o porquê desta antologia, e o porquê desta antologia agora? Enquanto mulher latino-americana, brasileira, não cabe a mim neste espaço tratar especificamente sobre as feridas coloniais que trazem diariamente, por exemplo, habitantes das ex-colônias portuguesas até aqui. Ainda que esta obra seja composta em 80% por poetas naturais de países que foram colonizados por Portugal, países estes que se tornaram politicamente independentes mas gozam de severas consequências deste processo, há neste trabalho escritores de outros países, que falam aqui sobre a experiência de existir com os pés do lado de fora das próprias fronteiras. Esta escolha de estrangeiros naturais de muitos pontos é parte da nossa crença que essa investida fascista não é exclusividade portuguesa, trata-se infelizmente de um movimento global (que aqui reacende antigos traumas dessa história em especial), e por isso, lembramos que todos os estrangeiros, cujos pés pousam no labirinto migratório, confrontam-se com as dores de serem reduzidos a estereótipos, de serem enxotados, ou quando aceitos, invalidados na sua subjetividade, forçados à aculturação, questionados quando assumem seus direitos políticos, ou quando recusam-se a abanar o rabo como um animal de estimação. Digo isso evocando o pequeno órfão Ngunga, personagem do escritor Pepetela, que caminha pelos quimbos de uma Angola em guerra anti-colonial e, mesmo menino, ao conhecer o cozinheiro do quartel colonial, consegue perceber a diferença evidente entre se formar um homem e se tornar um bicho doméstico de alguém. Por isso, tal e qual o Ngunga, optamos por sermos homens e mulheres que farão Portugal ao lado dos portugueses; nem acima, muito menos abaixo. Precisamos de Portugal mas sabemos que Portugal também precisa de nós, dos nossos braços, mas também do nosso entusiasmo, da nossa força e de tudo aquilo que conseguimos ver com os nossos olhos. Neste momento, o labirinto só nos permite seguir em frente. Não voltaremos porque já não há nada para trás, porque acreditamos que esta terra é tão nossa quanto vossa, conseguimos enxergar o grande holograma inventado que são os muros, uma ilusão que queremos implodir para que todos consigam ver o mundo real sem fronteiras que vemos, sem limites entre nós e o outro, entre o outro e nós, e neste dia possamos, afinal, sair do labirinto e sermos acolhidos pelo horizonte.

Índice

  • Manuella Bezerra de Melo

    Manuella Bezerra de Melo é curadora e organizadora da antologia VOLTA para tua terra junto ao editor Wladimir Vaz. Autora de Pés Pequenos pra Tanto Corpo (Urutau, 2019), Pra que roam os cães nessa hecatombe (Macabéa, 2020), ambos de poesia, e de A Fenda, seu primeiro livro de ensaio, no prelo pela editora Zouk. É jornalista especialista em literatura brasileira e interculturalidade, mestre em Teoria da Literatura e Literaturas Lusófonas e, atualmente, doutoranda no Programa de Modernidades Comparadas: Literaturas, Artes e Culturas na Universidade do Minho, em Portugal, onde vive desde 2017.

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