Uma criança contra o mundo: uma entrevista aos criadores do jogo Out of Line

Uma criança contra o mundo: uma entrevista aos criadores do jogo Out of Line

'Out of Line' é um quadro vivo e épico sobre a importância da infância num mundo opressivo, criado pela produtora portuguesa, Nerd Monkeys.

Neste artigo ser-vos-á apresentado o Out of Line, o novo jogo da Nerd Monkeys, através de uma entrevista bastante enérgica e interessante com dois dos seus criadores. Mas, antes de tudo isso, sinto-me na obrigação de vos falar sobre o meu verão de 2018. 

21 anos, acabado de terminar o meu primeiro ano de mestrado de Engenharia Informática no Instituto Superior Técnico do Taguspark (a distinção tem de ser feita para evitar possíveis desagrados de alunos ou ex-alunos do congénito lisboeta), já perplexo de medo pela iminente batalha com a tese de mestrado. Não escolhera o curso por motivos de paixão, mas sim por mera praticalidade e comodismo futuro. Porém, o mestrado dera-me uma valente desculpa para aprender de uma forma mais hands-on sobre uma das minhas paixões: videojogos, tendo sido esta uma das duas especializações que acabei por tirar, sendo a outra Inteligência Artificial (quanto menos disser desta, melhor).

Umas das cadeiras que tive, Metodologia de Design para Jogos, deu a oportunidade a dois alunos de fazerem um estágio de verão na Nerd Monkeys, uma produtora de jogos sediada em Lisboa que, embora invisível num panorama global, era bastante conhecida na comunidade portuguesa de game devs. Eu e o João Genebra, meu colega desde a licenciatura, concorremos ao estágio e acabámos por ser aceites. 

Dias e dias programação intensa e vais-e-vens suados em comboios apinhados, algo que nunca tivera de sofrer até então, foi assim o meu verão. Em dez semanas, fiz cinco simples jogos que nunca viram a luz do dia e me deixaram absolutamente de rastos, tanto física como psicologicamente. Independentemente da minha miséria, foi sem dúvida um dos tempos mais elucidativos da minha vida, durante o qual aprendi imenso sobre mim e sobre os pontos, as vírgulas e as notas de rodapé que formam a indústria de jogos em Portugal. Aprendi que desenvolver jogos não é pêra doce, que é uma constante luta de vontades, egos, ideias que ainda por cima têm de saber lidar com uma sistémica carência de investimento público e privado, tendo de fazer serviços barbaramente aborrecidos e anti-criativos de lado para poder financiar o desenvolvimento dos seus projetos “sérios”; ou isso, ou simplesmente buscar incessantemente por aquele investidor que esteja disposto a puxar da carteira para monetizar o teu sonho, a tua ideia, a tua pessoa. Entrei na Nerd achando que talvez fosse encontrar a minha vocação; saí de lá certo que não tinha a mínima pachorra para desenvolver jogos, que se o fizesse provavelmente iria perder todo e qualquer entusiasmo por um meio que sempre me acolheu e confortou — veria um escape, um espaço de expansão emocional e intelectual tornar-se um lembrete constante de esforço e frustração.

Mas, ao contrário de mim, o João decidiu permanecer na Nerd após o fim do estágio, decidindo congelar a matrícula para assim se dedicar a tempo inteiro ao seu trabalho na empresa. Enquanto eu sofria na minha secretária a dois metros da dele, o João trabalhou com o artista Francisco Santos num joguinho de plataformas que, infelizmente, perdera o seu programador principal, papel que João acabou assumir. Um bonequinho queridinho que pulava para aqui ou para ali, e atirava uma lança às paredes.  Quando saí da Nerd, a preocupação principal deles era encontrar um investidor para o jogo, coisa que demorou meses a acontecer. O futuro do jogo era incerto.

Agora, o Out of Line está prestes a ver a luz do dia..

A entrevista que se segue — também se pode dizer uma conversa entre amigos — foi realizada no final de Março. Ainda pensei inseri-la nas brechas dum ensaio, mas gostei tanto do quão espevitada foi a conversa que seria uma afronta retalhá-la em serviço de outra coisa. Procurou explorar todos os tópicos que até agora mencionei: criatividade, paixão pela indústria, a natureza colaborativa num ambiente de desenvolvimento indie, a batalha constante por financiamento, sem esquecer também o impacto que a Covid-19 tem no desenvolvimento deste tipo de obras. Portanto, agora sim, a entrevista.

Duarte Cabral (Shifter): Vá, apresentem-se.

João Genebra: Bem… tenho 25 anos, sou um dos programadores do Out of Line, comecei por tirar o curso de engenharia informática no [Instituto Superior Técnico], e estava a tirar o mestrado quando comecei a estagiar [na Nerd Monkeys], e acabei por aqui ficar. E pronto, tenho seguido o projeto desde então. E é isso.

Francisco Santos: Que bonito, que bonito. Então, o meu nome é Francisco, (num tom de sofrimento) tenho… 27 anos… Sou o criador e artista do Out of Line. Eu comecei por tirar o curso Cinema de Animação na Faculdade de Belas Artes, e só depois dei o salto para os videojogos. Não foi uma coisa tão direta, ainda não sabia que queria fazer jogos, foi só uma coisa que fui descobrindo ao longo do tempo. Fartei-me de fazer filmes, fartei-me da chatice que é tentar ganhar dinheiro a fazer filmes. Comecei estágio na Nerd, onde conheci o Genebra, e fizemos o Out of Line. E foi essa a magia.

(João Genebra à esquerda, Franscisco Santos à direita)

DC: Então, Out of Line… Elevator Pitch. Descrevam o jogo para alguém que nunca ouviu falar dele.

FS: Okay, vá… Então, o Out of Line é um jogo sobre um rapaz que vive aprisionado com os seus irmãos dentro duma fábrica. Um dia decide fugir, para procurar o que se encontra além dessa fábrica, para encontrar respostas sobre o porquê dele e os seus irmãos estarem lá presos. Mais ou menos isto.

JG: Pá… podemos dizer que é um jogo side-scroller, no qual a principal ferramenta do jogador é uma lança que usa para interagir com o ambiente. Usa-a não como arma, mas como ferramenta para resolver puzzles e superar obstáculos.

FS: Essa era mesmo uma ideia que queríamos manter. No jogo não é suposto termos armas, mas sim ferramentas.

DC: Porquê esse desvio, esse evitamento propositado de combate, que é tão usual?

FS: O personagem principal é uma criança. Se fores uma criança, tudo à tua volta é maior, tem mais força que tu. Não é pela força que derrubas obstáculos, não é assim que cresces. Tens de te adaptar, e neste caso tens de te adaptar usando a tua fiel ferramenta… Que é um pau amarelo. (Risos)

DC: Como te surgiu a ideia do Out of Line?

FS: A ideia surgiu há já bué tempo. Não como Out of Line, mas a história, a temática surgiu quando ainda estava na faculdade. Não como um filme, não como um jogo, mas sim um projeto meio interativo — uma daquelas cenas de faculdade onde pensas que estás a fazer coisas fixes mas nem por isso.

JG: “Sou bué artístico, bué diferente.”

FS: Ya, a sentir bué cenas (risos).

JG: “Não me compreendem.”

FS: E ya, a ideia surgiu aí, e também muito ligada à minha infância e à dos meus avós. O jogo toca ou tenta tocar em muitas dessas temáticas de embarcar na viagem da vida e de ser uma criança nela. Foi principalmente inspirada no meu avô. Ele adorava escrever, era um militar mas era um homem das artes. Sempre tentou cultivar imenso a nível de livros e todas essas coisas. Tirou um curso em filosofia, mas tinha um lado muito brincalhão e infantil. Achava bué interessante esse lado dele estar tão presente quando teve uma vida tão pesada e dramática, tipo… o clássico da altura, com 20 anos não vais para a faculdade, vais para a guerra. Sempre achei muito interessante essa dualidade, como uma inocência infantil se mantém até a uma idade mais velha. Sempre gostei muito nisto. Foi um mix de inspirações… pois claro, veio duma data de filmes, jogos, duma data de coisas, tudo à mistura. Quadros, também, principalmente quando estava na faculdade, a ter aulas de História da Arte, começas a pensar e a ouvir as histórias daqueles quadros, daqueles artistas…  


DC: A ideia evoluiu com o tempo? A ideia base desenvolveu-se ou modificou-se?

FS: A ideia base foi sempre mais ou menos a mesma, pelo menos, tentei manter sempre estes temas. Mas ya, o jogo em si evoluiu bué. A personagem, o ambiente, mesmo antes de ir para a Nerd, eu tinha um desenho que nada tinha a ver com o atual. Era um mix entre o Sans (de Undertale) e o Super Meat Boy, um gajo bué quadrado. A nível de história não mudou assim tanto. Quando entrei na Nerd, já tinha o guião escrito, uma estrutura feita, já sabia a direção em que ir. As diferenças que ocorreram depois foram mesmo a nível de jogabilidade, mecânicas…

JG: Veio um bocado com o shift que houve quando o game designer [Wilson Almeida], entrou para a equipa.

FS: Ya.

JG: Nem foi uma mudança no jogo, mas sim uma nova forma de concretizar as ideias.

FS: É aquela cena, já leste o guião um milhão de vezes, achas que está bué conciso, e quando começas a vê-lo num esquema num quadro com outra pessoa que faz game design… tipo, ya, há ali coisas que não fazem sentido e temos de as reestruturar. Nesse sentido evoluiu bué, quando Wilson entrou. Foi bué fixe, foi quase uma sessão de psicologia (risos), ficámos na cave sentados, e ele esteve a desconstruir tudo, a identificar temas, a fazer esquemas, gráficos, palavras-chave, foi um método muito engraçado para a construção de ideias.  

DC: Ia perguntar — por acaso adiantaste-te um bocadinho a mim. A ideia partiu de ti, mas ao longo do tempo as pessoas que estavam na equipa de desenvolvimento foram mudando. Eu lembro-me de quando estava na Nerd, o Genebra entrou para ocupar o lugar duma pessoa que tinha saído.

FS: Sim, a equipa evoluiu imenso. 

DC: Então a minha questão é o que mudou no projeto conceptualmente — e tecnicamente — à medida que o Genebra e outras pessoas foram entrando na vossa equipa?

JG: Acho que sempre que entrava algum elemento na equipa para preencher algum papel que não está necessariamente a ser feito por completo — por exemplo, ao início eu e o Francisco acabámos por dividir algumas coisas. Mas depois apareceu o Wilson, especificamente para o design, há uma materialização mais concreta de certas coisas. Mesma coisa com a entrada dum animador para o jogo, que também ajudou a trazer certas personagens. Dava para notar esses saltos, as acelerações no processo, a concretização de coisas. Em termos do conceito, será mais fácil o Francisco responder, mas notava-se sempre como o projeto era afetado positivamente à medida que a equipa crescia. Conceitos que estavam só na nossa cabeça  — porque há medida que estava mais tempo no projeto, mais absorvia as ideias do Francisco e a perceber a imagem que ele tinha —  mas quando entra uma pessoa nova que vai fazer uma tarefa que, até ao momento, está um bocadinho a meio-gás, de repente, começas a ver as coisas a aparecer e surgem-te ideias que até então nunca tinhas pensado.

FS: Quando a equipa começou a aumentar, quando começámos a ter ajuda, tivemos muito mais liberdade para começar a pensar. Quando éramos só eu e o Genebra estávamos tão ocupados só a tentar fazer o máximo possível, que… aquilo que a gente trabalhou quase não envolveu história, por exemplo. Em termos de cutscenes e narrativa, o que fizemos foi mais numa perspetiva de “temos de ter uma vertical slice para tentar vender.”

JG: Precisamos desta mecânica ou daquela.

FS: É tentar mostrar mecânicas, é tentar mostrar ambiente, som… não havia muito espaço para crescer conceptualmente. Mas depois com a equipa, isso ajudou imenso, eu ia contando a história ao pessoal, eles iam dando o seu input, faziamos alguns ajustes. Foi um processo bué fixe porque vias o bolo a construir-se aos bocadinhos.

DC: Sei que vocês ainda não tiveram uma experiência num formato de mais larga escala. Isto pode ser uma ideia algo alheia ao tema que estávamos a discutir e ao vosso jogo, mas como encaram a metodologia de desenvolvimento indie, onde uma “família” desenvolve o jogo, onde toda a gente tem um certo nível de input em cada elemento do desenvolvimento, comparado com uma estrutura mais vertical, a habitual no desenvolvimento de jogos com maior orçamento? Estariam dispostos a eventualmente transitar para projetos desse género?

JG: Eu tenho sempre interesse na comparação, tenho curiosidade em ver essas diferenças. Mas sinto que num ambiente mais pequeno, mais indie, há sempre um bocado mais de espaço para fazer uma adaptação orgânica, uma evolução mais natural do projeto com o feedback das pessoas. Quanto maior for a empresa, mais… claro que, dependendo dos ambientes, deve haver sempre espaço para cultivar as opiniões das pessoas, mas acaba por ser um bocadinho mais uma transmissão de objetivos e tarefas. Imagina, tens o lead artist que decide o visual, o ambiente, os tons, tens o pessoal que escreve, e há muitos que simplesmente estão a seguir a direção que outra pessoa definiu. Nessa escala acredito que não permita haver tanta deliberação. Claro que há sempre mudanças ao longo do desenvolvimento, mas lá está, é tudo mais fixo e mais linear. Pelo menos assim a um nível mais pequeno, há sempre mais esse à vontade. As coisas estão sempre relativamente disponíveis a serem discutidas.

FS: Tem os seus lados bons e os seus lados maus.

JG: Claro.

FS: O lado bom é poderes contribuir e sentir essa contribuição. O lado mau é haver sempre beef (risos), há sempre discussão.

JG: Toda a gente tem opiniões.

FS: E isso por vezes é um bocado perigoso, porque começas a meter os egos e opiniões das pessoas e depois tudo pode chocar. Por isso, ya, coisas boas e coisas más. Mas curtia ter a experiência de me darem só uma coisa para as mãos e dizerem “faz, vais seguir estas linhas e estas linhas e estas linhas e é isto que eu quero no fim”. Pela experiência, eu gostava de experimentar. Claro que teria de ser numa empresa fixe (risos).

DC: Vocês estavam a dizer que é normal num ambiente mais pequeno haver uma maior democratização do desenvolvimento. O quão metódicos eram vocês a resolver o projeto? Por vezes seguiam as coisas numa onda mais free jazz ou estruturavam passo a passo o desenvolvimento do projeto? E também, como evoluiu a vossa metodologia ao longo do desenvolvimento? Porque assumo que não tenha sido fixa, até porque com o vosso designer parece-me ter havido aí um shuffle completo.

FS: Falando por mim, houve imensas diferenças. Quando só estávamos eu e o Genebra, era um bocado… havia uma build necessária para um evento qualquer, e a gente preparava as coisas até essa build, estruturávamos os objetivos, “é preciso ter mais níveis, mais puzzles, mais tempo de jogo”, mas era uma coisa algo larga, não era muito específico. Depois quando começámos a trabalhar com o [Filipe Pina, produtor] e com a [Mafalda Duarte, produtora], ou mesmo com o Wilson, o game designer, as coisas ganharam uma estrutura muito mais fixe. Por exemplo, com o Wilson criámos mesmo uma linha do jogo. O jogo existia naquela linha do início ao fim, e depois nos altos e baixos da linha punhamos tudo, tipo “aqui vai haver uma cena importante numa cutscene, então sabemos que aqui o ritmo do jogo aumenta” ou então “aqui o personagem está sozinho, então mantemos algo mais linear, depois aqui ele é assustado, e a intensidade volta a subir”. Tínhamos quase como um gráfico de ritmo e gráfico de história, uma coisa bué fixe que nunca tinha feito. Foi uma metodologia que foi evoluíndo até a um ponto de chegarmos com a Mafalda e o Pina como produtores, e depois já tínhamos “esta semana vai acontecer isto, na outra vai acontecer aquilo, ao fim destes três meses temos de ter isto”, e depois há tarefas todas as semanas para um objetivo maior lá mais para a frente. Estava tudo planeadinho.

JG: E quando tens os produtores tens pessoas que é suposto saberem o que cada parte do projeto deve fazer. Essas pessoas não só te estão a delegar as tarefas que tens de fazer semana a semana, como também sabem ver as cenas para as próximas semanas, porque sabem quais são as fases de desenvolvimento, sabem o que vem a seguir, o que já foi feito. Por isso, sim, à medida que a equipa cresceu, a coisa mudou um bocado, as obrigações e a urgência são outras, e à medida que vais tendo deadlines mais específicos há sempre essa necessidade dum maior rigor no processo.

FS: Eu e o Genebra sozinhos era mais “vamos escrever aqui nuns post-its e vamos fazendo” (risos). Quando eles chegaram a sério… ter tudo organizadinho na plataforma, ter os reports feitos ao fim da semana, as tarefas que conseguimos, aquilo que precisa de mais tempo, era tudo mais organizado.

DC: Vocês disseram que havia uma certa preocupação da vossa parte em ter algo pronto para um certo e determinado evento, fosse ele qual fosse. Deram por vós a trabalhar mais para eventos do que para o próprio jogo?

FS: (pausa) Às vezes acontecia.

JG: Sim, um bocado. Mas não era só trabalhar para eventos, mas também trabalhar para procurar investimentos, por assim dizer.

FS: Tentar sobreviver ali.

JG: Exato! O trabalho não é tanto para terminar o jogo, mas sim com o objetivo de convencer alguém.

FS: É com o objetivo de começar o jogo (risos).

JG: Por isso, sem dúvida, o foco foi algo diferente daquilo que seria num desenvolvimento “normal”. Tens de fazer as coisas numa ordem um bocado diferente.

DC: Ou seja, vocês não estavam a criar algo sobre a qual iteravam. Faziam uma fatia algo abstrata que tivesse…

JG: O objetivo era sempre tentar aproveitar ao máximo aquilo que estávamos a fazer para levar a eventos e para mostrar a possíveis investidores. Mas lá está, estares a mudar a ordem das coisas faz sempre com que haja algum tempo mal aproveitado, se fosse para estar a fazer em desenvolvimento normal. Mas nós tentávamos sempre organizar a coisa de modo a que nada daquilo fosse desperdiçado.

FS: Chegou ali a um ponto em que já estávamos do tipo “vamos lá planear isto, porque imagina que não há investimento. Se calhar temos de tentar pensar aqui numa solução e tentar planear nós alguma porcaria que salve isto da melhor maneira.” Planeávamos tudo, todas as possibilidades e posições.

JG: Tipo 3D Chess (risos).

DC: Os outros membros da equipa só entraram após o investimento, certo?

JG: Sim.

FS: Certo.

DC: Falem-me mais sobre essa parte, essa busca pelo investimento. Como é isso cá em Portugal, daquilo que vocês viram e sentiram?

JG: Para a pergunta do “como é isso cá em Portugal”, a resposta é “não é feito em Portugal” (risos). Cá muito dificilmente arranjarias alguém para investir num jogo, porque a maioria das pessoas que fosses tentar convencer não iam conhecer o setor. Desde começar a comunicar o que o investimento envolve, não há uma educação na outra parte que o permita, até porque o setor é ainda pouco desenvolvido cá em Portugal. É preciso empresas maiores, coisas noutra escala. Então acaba por ser muito como funciona a Nerd. O [Diogo Vasconcelos, produtor] ia a eventos lá fora, a feiras de game dev, e fazia-se a cena B2B, business-to-business, onde se agendam reuniões, pitch meetings, onde mostras o jogo. Não sei os específicos, mas é basicamente isso. Claro que com o COVID a coisa mudou um bocadinho a estrutura, mas o objetivo é ir sempre a eventos nas quais empresas estão à procura de financiamento para jogos, por vezes publishing deals, por vezes outros tipos de investimento. Do outro lado, tens publishers e outras empresas grandes que procuram projetos onde investir. A maneira mais fácil é mesmo ires a esses eventos, fazeres imensas reuniões, até alguém ter interesse, e depois é continuar a negociar e discutir.

FS: E era uma pessoa 100% dedicada a isso, a falar por emails, a organizar reuniões, follow-ups de emails, a organizar ficheiros Excel que diziam quando estes emails seriam enviados e a quem. Era um trabalho puxado.

JG: E, por vezes, entre vários eventos haviam reuniões para mostrar o que mudou entretanto. Contacto em pessoa facilita muito mais que por email.

FS: É ires fechando o círculo. Mandas-te para o mar, encontras três ou quatro que gostam de falar contigo, então aproveitas isso ao máximo, vais aos eventos onde essas pessoas estão. Quando toda a gente está naquela situação, calculo que saiba bem ver lá uma cara conhecida. Assim é muito mais fácil criar proximidade com as publishers. Acho que é mais ou menos isso. E nunca em Portugal (risos).

DC: Uma questão relacionada com a Nerd Monkeys. Havia pessoas na empresa que não trabalharam no jogo convosco. Da minha experiência pessoal na empresa, do tempo que estive lá a ver-vos, sempre tive a impressão que o jogo nunca foi da Nerd, mas sim vosso. A mim parecia-me que a Nerd estava ali numa capacidade de suporte, mas não eram eles developers. Qual foi o papel deles nisto tudo?

FS: É exatamente isso que disseste, até um certo ponto. A Nerd de facto estava ali com um grande suporte para nós até conseguir estar completamente investida connosco. Isso só pode ocorrer a partir do momento que tem dinheiro para contratar pessoas para nos ajudar. A Nerd nunca conseguiria arranjar pessoas sem lhes poder pagar. Até ao financiamento, a Nerd teve um papel bastante… lá está, de suporte. A partir do momento em que tem recursos para pôr no nosso projeto, então ya, aí o leque abriu-se e começámos todos a trabalhar mais em conjunto. Eu era o artista, o Genebra o programador, faltava o resto da malta toda: animadores, malta do som, música, VFX, coisas que eventualmente iríamos fazer, mas não iria de todo ficar tão bom quanto ficou. A Nerd ter investido no projeto foi espetacular.

DC: Há bocado mencionaram a Covid-19 e, de facto, não tinha isto em mente, mas faz sentido perguntar. Como foi o pré e pós-COVID para o desenvolvimento do Out of Line?

JG: A principal coisa é que passa toda a gente a estar em casa, e afeta tudo o que seja jogo ou algo criativo. Desenvolvimento de software é algo mais fácil de se fazer em casa, mas quando tens um jogo que tem a sua componente criativa, retira sempre ao projeto deixar de haver contacto com as pessoas no escritório. Não podes simplesmente chamar uma pessoa e pedir-lhe a opinião sobre uma coisa– quero dizer, poder podes, mas é muito menos orgânico. Para trabalhar acho que não houve problemas, aliás, eu acabei por gostar mais.

FS: Eu gosto bué (risos).

JG: Cada pessoa faz o seu trabalho, e até dá alguma liberdade para tu gerires o teu horário. Não tens pressão que te faça sentir mal por fazeres uma pausa literalmente a meio da tarde, à toa, que se estivesses num escritório te deixaria desconfortável, a ti e às pessoas à tua volta. Em casa, não é uma coisa má, simplesmente é uma questão de te saberes organizar. Mas pronto, na parte criativa retira ao processo, torna certas coisas mais lentas, há mais formalidade. Se o Francisco queria uma opinião do Pina, porque eles debatiam aspetos da arte e das animações, passa a ser necessário agendar uma reunião. É principalmente na parte criativa que se nota mais isso. E depois, há medida que a equipa cresce, a meu ver, para um produtor é mais fácil ter toda a gente no escritório para te manteres a par do que cada um anda a fazer. Acho que são esses detalhes.

DC: Sentem falta do debate à frente do quadro?

JG: Sim, um bocadinho.

FS: A nível de trabalho, eu até pedi ao Diogo para vir um dia por semana para o estúdio. Antes, fazia-me confusão fazer trabalho criativo no meio da confusão, do barulho, das reuniões, quando gosto de estar no meu cantinho a pensar em coisas. Mas não indo ao estúdio perdes toda a parte divertida do trabalho, o convívio, o poder ver o que se passa nos outros projetos, isso ajuda-te a querer crescer. Debates ideias novas, vês coisas novas, vais tomar um café e ficas na galhofa, ficas com a noção da Big Picture. Enquanto aqui no COVID tens as tuas tarefas, fazes, se precisares de alguma coisa, mandas uma mensagem, mas é muito mais num modo de “linha de montagem”.

JG: Chega-te a acontecer ires a uma reunião e falarem-te de algo que nem sabias que estava a ser feito. Eu sou programador, e depois oiço-os a falar que já meteram aquela cutscene ou aquela animação, e eu fico “uh, fixe, nem sabia”. No estúdio ouvias o pessoal a comentar “agora vou fazer aquela coisa” ou então chamavam-te para ver outra. Estar em casa afeta mesmo o processo criativo, mas o resto faz-se na mesma.

FS: Mas gosto bué de não ter de perder horas a ir para o escritório.

JG: Por um lado, isso partiu-me o hábito de ler que eu tinha.

FS: Perdeste o teu autocarro, o teu metro.

JG: Mas tirando isso, sem dúvida que é bom.

DC: Voltemos ao Out of Line. Que influências mediáticas teve? Que jogos, filmes, livros, o que gostam de consumir no vosso dia-a-dia, o que infetou o ADN do projeto?

FS: As inspirações principais são sem dúvida Limbo e Inside. Qualquer platformer moderno com puzzles é impossível não ter sido influenciado por estes jogos. Eu queria algo na onda deles, mas mais colorido, tanto a nível visual como narrativo. Hmmm… Ah, também há um jogo muito giro chamado FAR: Lone Sails, não sei se já jogaste.

DC: Não conheço.

FS:  É também um jogo muito bonito. Controlas uma miúda assim muito pequenita e também é um side-scroller

DC: Ahhh, já sei qual é.

FS: …e tens uma máquina gigante com uma vela. Pronto, esse jogo inspirou-me muito a nível sonoro, como a música e o som podem contar uma história, o sound design daquilo é espetacular, a música bate mesmo… A música e o ambiente encaixam perfeitamente, e ya… Queria tentar aproximar-me ao máximo disso. Mas referências, pá, eu tenho aqui muitas. Firewatch, por exemplo, eu adoro aquela história. The Last of Us também, mais no sentido da sobrevivência num sistema que não controlas, num mundo onde tudo é maior que tu, és a parte pequena daquele mundo. The Last of Us acho que consegue– eu só joguei o primeiro, mas acho que tocou-me nesse sentido de escala.

DC: Genebra, inspiraste-te no God of War para fazer a lança? (Nota: a lança do Out of Line, à semelhança do machado do God of War, é uma que o jogador pode lançar para o cenário e, com o pressionar dum botão, fazê-la voar de volta para as mãos da personagem. E também, God of War é um dos jogos favoritos do João).

JG: Isso é… polémico (risos). Isso é polémico porque o God of War ainda não tinha saído quando o Francisco teve a ideia.

DC: Então estás-me a dizer que foi o God of War que se inspirou no vosso jogo?

JG: Ya, eu acho que alguma coisa se passou aí.

FS: Viram o nosso jogo.

JG: O jogo ainda não tinha saído. Depois quando saiu as pessoas começaram a dizer “AH É TIPO O GOD OF WAR”.

FS: Ninguém lança nada nos jogos. Depois, de repente, há um jogo com um gajo bué grande que lança um machado e chama-o de volta. Tipo, que é isto? Há aqui malta a imitar-nos (risos). Mas voltando às inspirações, fora de jogos, clássicos filmes tipo My Neighbor Totoro e Spirited Away, Grave of the Fireflies, todos esses universos encaixam perfeitamente na história que queria contar, onde a força do personagem vem duma criança, uma ideia muito mais japonesa que americana. Na ideia americana, os heróis ou são adolescentes ou adultos, e adoro como estes filmes retratam a força duma criança num mundo adulto. Havia elementos gráficos que me queria ter aproximado muito mais, mas que depois eram tecnicamente impossíveis de fazer, portanto abandonei-as. E também, grande parte das minhas inspirações vêm de curtas, porque tenho o hábito de todos os dias de manhã ver uma curta no Vimeo. Momento de inspiração do dia. Escolho uma com um thumbnail fixe, por vezes até vejo mais que uma. Foi assim que descobri muitas coisas que me dão inspiração. Festivais de cinema de animação, na altura em que estava na faculdade, havia neles imensas curtas que me deixavam muito inspirado para o jogo. Levava o bloquinho de notas, e ficava “isto é perfeito para o jogo, vou fazer isto assim, isto assim, isto assim”. Pintura também, o movimento impressionista ou expressionista, não só a nível gráfico mas também do próprio movimento, das suas filosofias, que eu trago para o jogo. Por exemplo, no impressionismo, aquelas imagens vêm da ideia de representar uma passagem do tempo, apanhar um momento no tempo, e como a luz interage com o tempo, como as cores, as vibrações, criam o momento que está à tua frente. Volta a pegar na ideia de como tu, numa perspetiva de criança, olhas para o mundo, como o absorves, como evoluis. Juntei vários elementos que mantém a filosofia na narrativa do jogo, mesmo que isso depois apareça ou não no jogo. Por vezes não dá para fazer todas as coisas bonitas que querias. Queres adicionar alguma referência, Genebra?

JG: O Stack Overflow (risos). Eu nesse aspeto, como no início o projeto era do Francisco, a minha preocupação era mais tentar ajudar a tornar realidade a visão dele, seja nas mecânicas ou que fosse. Custa-me então um bocado dizer qualquer referência.

FS: Eu não gosto muito de quando as pessoas dizem que a ideia foi minha. A base, claro, foi minha. Mas sempre tentei, e tento, dar-vos o espaço para vocês dar input, “digam coisas, mostram coisas, perguntem”, nunca houve uma cena de “eu é que sei, isto fica assim”.

JG: Sim, sem dúvida. Eu próprio lembro-me de me sentir à vontade, de dar opinião.

FS: Assim o processo criativo é mais interessante, se abrires a porta a outros inputs.

JG: Desde que não chegues lá numa de “sabes o que ficaria aqui mesmo bem?? Metiamos um ganda blah blah blah blah”, está ótimo.

DC: Acham que o Out of Line é algo que só poderia existir em formato de jogo?

JG: Hmmmmm.

FS: Hmmmmm.

DC: Se calhar esta questão é algo traiçoeira.

FS: Talvez.

DC: Com isto eu queria trazer algo ao de cima uma outra questão: porquê um videojogo? Porquê neste formato? O que traz o formato à ideia?

FS: Pois… Realmente é uma boa pergunta sem dúvida (risos). PORQUE É MAIS FIXE, NÉ?! FOGO!!! (risos). Pá, não sei…

DC: Se não disseres mais nada, eu vou escrever isso, acredita.

FS: (risos) Não sei… Acho que é um formato mais capaz, mais forte que os outros. Não sei se isto é correto de dizer.

JG: O Duarte deve estar triggered.

DC: Não necessariamente, eu acho os videojogos a forma suprema da arte atualmente.

JG: Uau!

DC: Genuinamente! Digo isto com toda a honestidade.

FS: É um bocado por aí, os jogos conseguem juntar todo o tipo de arte: poderes interagir com uma história contada com gráficos e com música, e poderes controlar isso… Não sei, é uma ideia bué romântica.

JG: Falando só do aspeto narrativo, tu conseguirias pegar na narrativa dum jogo e fazê-la noutro formato. Mas ao acrescentares a tua participação, até numa narrativa linear, o facto de sentires que participaste e que podes interagir com tudo duma forma mais direta, amplia facilmente o teu investimento na história e a maneira como sentes emoções. Vais te sentir mais imerso nessa narrativa que, se calhar, poderias ter visto num filme ou série ou livro.

FS: Quando dás o passo e te tornas num observador-participante, é assim uma cena que consegue partir muitas barreiras, eu acho. Consegues perceber as cenas de outra maneira. Claro que o Out of Line é um jogo mais linear, talvez pudesse ser feito noutro formato, mas acho que como jogo ganha muito mais, por ser essa mistela de emoções e de coisas. Claro que depois, tecnicamente, é bué mais difícil de fazer (risos). Fazer um jogo é um processo muito mais complicado que fazer um filme de animação ou algo do género.

DC: Como vêem o futuro? O vosso futuro, em específico?

FS: Pá, não sei. Agora estou um bocado na fase de ressaca. Tipo, tive bué anos a pensar nisto, nesta ideia, nesta história. Claro, entretanto pensei noutras, mas era esta que estava a concretizar. Mas agora que está a acabar estou-me a sentir um bocado… “Já está, e agora? Era este o objetivo. Já não sei o que fazer mais.”

JG: Tipo aquele meme do “why are we still here?

FS: Ya, a motivação… vai demorar até voltar a ficar entusiasmado por um projeto como estava para o Out of Line. Acho que estou um bocado… isto foi como uma chapada. Estavas à espera que finalmente acabasse, acabasse, acabasse e PÁ!, acabou. E tu ficas “what?! Agora começo tudo outra vez?!” Não sei o que pensar sobre isso.

JG: Estou um bocado como o Francisco, na parte da ressaca. Não sei bem o que quero fazer agora a seguir. Não sei, continuo curioso.

FS: Gostava de continuar a fazer jogos, continuo com o bichinho de fazer filmes de animação, continuo de fazer coisas só por mim, ir pensando noutras histórias, fazer uma curta. Gostava de fazer uma curta fixe, assim uma coisa maluca. Gostava de aprender a trabalhar em 3D, até aprender a programar, fazer uns protótipos fixes. Não sei, gostava de fazer muita coisa.

JG: Ya, ainda estamos no processo de terminar.

FS: Ainda não terminou, mas o que há para terminar é muito mais fácil.

DC: Pois… eu ia agora fazer a questão chata. Data de lançamento, têm?

J e FS: Não há.

DC: Não há?

FS: Olha, vou-te ser muito honesto… Nem eu sei. (risos) Se a gente diz que não há, é porque não sabemos. Ninguém sabe.

DC: Mas é para este ano?

J e FS: Sim.

JG: E há de ser para breve.

DC: E plataformas?

FS: Também não sei.

JG: Pois, não sei se isso é algo que a gente pode estar a dizer ou não.

DC: Eu sei que sai para o PC porque está na Steam.

FS: Ya, e se vires o trailer, aquilo diz lá que é uma ganda festa, que sai para tudo. (risos)

JG: Gostei da frase.

Out of Line sai dia 23 de Julho para PC (Steam), Nintendo Switch, Xbox One e Playstation 4.

Se chegaste até ao fim, esta mensagem é para ti

Num ambiente mediático que, por vezes, é demasiado rápido e confuso, o Shifter é uma publicação diferente e que se atreve a ir mais devagar, incentivando a reflexões profundas sobre o mundo à nossa volta.

Contudo, manter uma projecto como este exige recursos significativos. E actualmente as subscrições cobrem apenas uma pequena parte dos custos. Portanto, se gostaste do artigo que acabaste de ler, considera subscrever.

Ajuda-nos a continuar a promover o pensamento crítico e a expandir horizontes. Subscreve o Shifter e contribui para uma visão mais ampla e informada do mundo.

Índice

  • Duarte Cabral

    Tem 26 anos, tirou o mestrado em Engenharia Informática e de Computadores e trabalha atualmente como engenheiro de dados. A sua real paixão reside nas artes, nomeadamente no cinema, literatura, e videojogos. Planeia eventualmente aventurar-se na área de cinema, mas até lá contenta-se a escrever sobre tudo aquilo que o inspira.

Subscreve a newsletter e acompanha o que publicamos.

Eu concordo com os Termos & Condições *

Apoia o jornalismo e a reflexão a partir de 2€ e ajuda-nos a manter livres de publicidade e paywall.

Bem-vind@ ao novo site do Shifter! Esta é uma versão beta em que ainda estamos a fazer alguns ajustes.Partilha a tua opinião enviando email para comunidade@shifter.pt