Fonte: “um intuito que vem do coração e não da mente” para celebrar a sua existência

Cortesia Fonte / Alípio Padilha

Fonte: “um intuito que vem do coração e não da mente” para celebrar a sua existência

Conversámos com a Fonte, uma rede virtual de jovens africanos na diáspora, sobre o que fazem e por que o fazem. Seis membros do grupo partilharam com o Shifter a perspectiva do seu lugar de fala.

Nael: Nós falamos da nossa perspetiva e dentro da nossa comunidade. Mas lá está, quem se identifica com a Fonte, mesmo que seja uma pessoa branca, simplesmente identifica-se. Nós não estamos a falar especificamente para um público, nós estamos a ser, e quem se identifica com o que nós somos, identifica-se com a Fonte.

Laima: E pode-se juntar, não existem tabus. Acho que a cena revolucionária, para mim, é que é fora dos estereótipos e da caixa que normalmente engloba pessoas negras, mulheres negras ou jovens negros. É uma coisa fora dessa caixa, em que nós podemos só ir e ser.

Emanuel:  A celebração da existência.

Este excerto de um diálogo entre Nael, Laima e Emanuel, membros da Fonte, uma rede virtual de jovens africanos na diáspora, surge de uma conversa que tivemos por videochamada, algures em março. Presentes – virtualmente – estavam também Henrique, Rafaela e Janga. Ao todo, éramos oito, e não só mas também por isso a conversa se prolongou do final da tarde pela noite dentro. Trazíamos um fio que tinha ficado solto do artigo “A História Única é o Abismo do Conhecimento”, publicado na segunda edição da revista do Shifter, para a qual Nael, em representação da Fonte, tinha sido entrevistada, e onde acabávamos com uma referência à roda de conversa em que questionavam “o que é a branquitude?”, mas sem saber ao certo onde com ele queríamos chegar fomos tecendo a conversa num diálogo rico. Uma das razões da existência da Fonte é a mesma razão pela qual esta conversa ficou arquivada durante meses e, publicada hoje, não perde atualidade, nem pertinência. É uma expressão genuína que mostra como é sempre altura para convocar olhares contra-dominantes, para celebrar a existência.

Pouco tempo antes da nossa conversa ter acontecido, a Fonte participava num evento organizado pelo Liceu Camões e sofria um ataque racista a meio da sua apresentação, um momento que sem querermos valorizar em demasia acabou por proporcionar parte da conversa. “Nós só tínhamos passado um vídeo, que é um conteúdo artístico e super educativo, e houve aquela aquela movimentação toda. Só o facto de estarmos ali a propôr-nos a falar sobre uma coisa já é visto como uma afronta”, comenta Nael, que participou na sessão. Ao que Henrique “quando qualquer negro fala fora do contexto condicionado, ou fala num tom mais decolonial, um branco que não tá no processo de desconstrução vai-se sempre sentir intimidado” – aludindo ao evento mas ampliando o espectro da reflexão, partilhando as contigências de assumir o lugar de fala. O trabalho principal da Fonte é mais do que educar sobre o racismo ou questionar os outros sobre a branquitude; tem sido afirmar as narrativas e os corpos negros que são sistemicamente silenciados. E celebrá-los em coletivo. Promovendo mais do que um confronto, um convívio.

Há no contexto português um legado colonial impossível de ignorar. É na contra-esfera desse contexto que surge a Fonte. Na reivindicação de um espaço de reflexão e de partilha, para e com pessoas negras. Na conta de Instagram, têm feito conversas sobre temas tão distintos quanto “Celebrar A Voz da Mulher Negra”, “Origens e efeitos dos ideais da sociedade branca no homem Negro”, “Mulher Negra em Espaço Intelectual”, “Hipersexualização da Mulher Negra” e “Bairros como Zonas de Resistência”, sempre com convidados a oferecer as suas perspectivas. Na rádio Quântica, têm um podcast — Nossa Fonte — no qual vão debatendo temas que unem, de alguma forma, todos os membros da Fonte. São como uma roda de conversa onde se trocam ideias sinceras e aproveita as plataformas para ampliar o tamanho do círculo, abrindo espaço para quem se identifique.

“Nós fazemos reflexões mais profundas sobre o que aceitamos ou não”, contextualiza Janga. Emanuel, que foi o moderador da conversa “Bairros como Zonas de Resistência”, concorda, e acrescenta que na Fonte não caem “nas agendas de outras pessoas” e têm, por experiência própria, “muito cuidado no discurso”. Na noite em que esta entrevista aconteceu, a conversa que Emanuel moderou ainda estava fresca — tinha acontecido no dia anterior —, e a figura do bairro serviu de analogia para situar a Fonte: “o bairro cria a sua própria realidade e tenta replicar as visões da cidade de uma forma muito mais orgânica e genuína, porque a vivência do bairro é comunitária, enquanto a vivência da cidade é muito individualista”. Não lhes interessa tanto a ideia de que “o bairro vá à cidade”, mas sim de que “a cidade vá ao bairro”. 

Ao seguirmos atentamente o trabalho da Fonte, percebemos que a comunidade é o centro do que fazem. Os contributos dos diferentes membros completam-se uns aos outros numa espécie de contínuo entre conversas em directo, podcasts e tertúlias presenciais. De uma ponta à outra nesta conversa, cada tema foi surgindo sem que estivesse escrito num guião — da nossa parte — e abordado com uma fluidez de quem já pensa em conjunto e se completa — da parte da Fonte. Na sequência do que Janga e Emanuel haviam dito sobre o funcionamento da Fonte e a vivência do bairro, Nael, que está neste momento a estudar Psicologia, aproveita para convocar Grada Kilomba (cujo livro Memórias da Plantação estava a ler, na altura): “ela diz uma coisa incrível, que é que a margem, a periferia, neste caso os bairros, são os sítios onde consegues criar novas formas de expressão”. “A Grada diz isto no sentido em que naquele espaço não reiteram as leis do centro, as leis de todo o plano Europeu e Colonial. Ali, podes criar outras formas de expressão, porque aquelas pessoas não estão no centro, por norma, então estão sempre a reconstruir-se. A existir de outras formas”. 

“Um centro que abre noções epistemológicas sobre as [nossas] vivências”

Ao abrir a primeira página de Memórias da Plantação, encontramos os versos de Jacob Sam-La Rose que simbolicamente escolhemos para iniciar a peça “A História Única é o Abismo do Conhecimento”. Nunca é demais relê-los: “Por que eu escrevo? /Porque tenho de / Porque a minha voz /em todas as suas dialéticas /foi silenciada por muito tempo” 

Quando preparámos esse artigo, que acabou por agregar visões sobre as raízes do conhecimento e a força da ancestralidade, a Fonte foi uma escolha natural. A cada partilha que fazem na conta online, dando a conhecer artistas negros e as suas obras, e a cada conversa que inicia em comunidade, a Fonte contraria a História Única hegemónica. Por um lado, partilha referências com os seus seguidores, por outro, divulga o trabalho de artistas dentro da sua própria comunidade. Põe os artistas lado a lado, e ao lado de reflexões sobre temas do quotidiano, potencia que estes sejam referências uns para os outros, e para o público, e cria um arquivo para que outras pessoas (se) possam conhecer mais, para que esta relação se continue e complemente organicamente.

Todas as decisões que tomam, passam por todos os membros — e a curadoria do projeto não é excepção. Organizam-se por Mesas, onde cada membro exerce a função que melhor sabe, mas todos estão a par do que acontece, transportando para o seu processa esta lógica conversacional e participativa. Laima explica como é que funciona: “na nossa mesa da pesquisa estabelecemos todos os temas — mas isso é uma coisa geral, em conjunto, da Fonte”. “Depois, de acordo com os temas, é um processo bué natural, cada pessoa faz ‘como lhe dá mais jeito’. Dentro do tema que nós arranjamos, tentamos trazer ou coisas que já vimos, ou então vamos fazer uma pesquisa. Mas é mais um processo de curadoria pessoal, cada pessoa tenta ver e estabelecer uma narrativa através de várias peças de arte para criar uma narrativa que faz sentido  com o tema e com a mensagem que a Fonte quer transmitir. Depois vamos a votos, e vai para outra mesa que escolhe a estrutura correta, o enquadramento…”

“O trabalho feito na Fonte é bastante leve”, diz Rafaela aludindo à naturalidade com que as suas expressões se cruzam dando origem a algo maior. “Todos nós temos responsabilidades,  todos nós temos prazos com uma mesa ou com outra, e o processo de trabalho tem sempre aquelas aquelas partes menos agradáveis porque faz parte, é trabalho mas vem sempre com uma carga de leveza porque lá está, é muito do intuito de cada um de dar o que o que pudermos dar. O nosso objetivo é mesmo criar espaço de discussão, informar, desmistificar. Portanto os nossos objetivos acabam por não ter aquela carga de ‘ai, nós queremos atingir este número’. Todos nós temos um objetivo comum, interior, mesmo de cada um. Há determinados assuntos que eu acho que para a nossa comunidade devem ser discutidos, há determinadas pessoas que devem ser faladas, há determinados tópicos, determinados temas que merecem voz e que nós próprios sentimos essa necessidade ou porque já passamos durante um tempo da nossa vida e não víamos esses sistemas e achávamos que tinham importância ou porque achamos que são urgentes na altura, e por aí. Portanto é um trabalho bastante fácil, de cada um.” 

Henrique olha para a conta do Instagram como uma espécie de arquivo, a materialização do fluxo que os liga, não só a eles mas a todos os que se juntam. Ao estar disponível para todos, “é uma porta que fica aberta” ao conhecimento. “Acima de tudo, eu vejo a Fonte como um meio, um centro que abre noções epistemológicas sobre as nossas vivências; é todo um questionar do saber, é todo um espaço onde pode haver uma expressão, poder haver um manifesto, pode haver manifestações. E quando digo manifestações não digo políticas, até digo que é um bom sítio para fugir ao que chamamos política no mundo ocidental. É um lado de autonomia e é uma zona de autonomia e, por isso mesmo é um lado de uma celebração epistemológica porque é bué tipo saberes nossos que fogem de espaços institucionais, literalmente nós só expressamos os nossos saberes que vêm do coração – que é a referência à filosofia africana, um intuito que vem do coração e não da mente. Acho que a Fonte é esse espaço. Muito africano, muita identidade africana a ser celebrada”, continua.

O nosso encontro por videochamada deveu-se à situação pandémica, mas também ao facto de nem todos vivermos no mesmo perímetro geográfico. É assim que acontece com as reuniões da Fonte, também, já que alguns, como o Henrique, vivem noutros países europeus. A internet surge aqui como meio que permite o encontro entre os jovens africanos na diáspora, tanto na organização, como nos seguidores. Mas Janga confessa que tem vindo a pensar na importância dos encontros presenciais. Em dezembro, organizaram uma exposição e uma roda de conversa num evento da Quântica, na Rua das Gaivotas, que terá uma continuidade hoje, 10 de junho, no jardim do Museu de Lisboa, em parceria com o Festival Rama em Flor. As conversas pretendem ser um convite à reflexão, “sem tabus” como dizia Laima. Janga diz que nestes momentos é importante “haver uma ligação entre toda a gente que está no espaço”, convidando à reflexão sobre a relação íntima entre os espaços físicos e os espaços democráticos, e a importância de ocupar locais tradicionamente distantes. “Acho que foi essa importância de nós naquele dia estarmos naquele espaço. Claramente não é o tipo de espaço a que nos tentaríamos dirigir, mas acho também que é importante em certas ocasiões específicas levar este contexto da Fonte para esses espaços”, comenta.

Para Laima, estes eventos presenciais “englobam a essência da Fonte”, já que são momentos em que “[os membros da Fonte] lideram a situação”. “Nesses momentos temos o palco, damos o palco a pessoas como nós, jovens negros, artistas, pessoas que querem expor o seu trabalho. Eu acho que foi isso que fez o evento na Quântica ser mesmo fixe, porque fomos nós e outras pessoas como nós. Foi bué bom ver o protagonismo, outra faceta das pessoas negras que nunca é evidenciada. Nós estávamos ali a representar aquilo e a apoiar pessoas que também fazem isso”. Esse protagonismo aconteceu também numa sessão de cinema, o primeiro evento que organizaram, onde se sentiram, nas palavras de Laima, “sem o white gaze, sem ter de provar alguma coisa, só a expor o que queremos fazer, o que estamos a fazer;  só a ser nós, basicamente”. É por isso que, para si, a Fonte não representa um “lugar de confronto ou de tentar provar alguma coisa para um público branco, ou para pessoas que querem confronto com discussões” — “é mais um lugar de celebração”.

Cortesia Fonte / Alípio Padilha

“Um dialeto pluliversal”

O encontro com a Fonte pode ter múltiplas reações e significações para quem se encontra com a plataforma e a começa a seguir. Rafaela sente que esse encontro “propõe que não exista o peso dos estereótipos, dos catálogos, dos rótulos”. “Nós temos noção que muitos ainda estão nessa caixa ou estão no processo para sair dessa caixa”, comenta, ao que Nael acrescenta, “eu diria que até é um processo para nós, para sairmos de dentro da caixa”, denotando o carácter simbiótico desta relação onde ninguém procura impôr a sua verdade e todos procuram cultivar o diálogo. Há um processo de aprendizagem, de dentro para dentro e de dentro para fora, que surge a cada conversa e partilha entre todos. No entendimento de Henrique, estão a estabelecer “um dialeto pluliversal”.

“Acho que é bué um processo de educação para nós, por exemplo eu sinto que desde que nós começámos até hoje, já tenho ideias muito diferentes sobre muitas coisas. Houve uma maturação de algumas ideias. Todos nós estamos aqui a aprender, é mesmo um espaço de troca de ideias, troca de argumentos, de aprendizagem. No sentido mais verdadeiro da frase, ninguém está a ensinar a outras pessoas. Estamos mesmo a querer abrir espaços de conversa e ouvir todos os lados e não querer dizer assertivamente ‘esta é a maneira certa de pensar’, porque no fundo não existe a maneira certa de pensar, todas as pessoas têm a sua perspetiva”, sugere Laima. Para Henrique, este processo de partilha com os restantes membros da Fonte tem sido “muito empoderador”. Quando o diz em voz alta, todos concordam e demonstram a amizade que têm uns pelos outros. É a celebração da existência em coletivo.

Na Fonte, o racismo estrutural comenta-se pela voz de quem o sente. Num país em que grande parte dos corpos a quem é concedido poder e legitimidade são brancos, onde se comentam estes tópicos com apenas uma pessoa negra em painéis televisivos, onde se fazem capas que perpetuam discursos que excluem, as vozes da Fonte reivindicam os seus lugares de fala e levantam questões. Não é por acaso que hoje, dia 10 de junho, data em que se celebra o Dia de Portugal, organizam a sua conversa que pretende desorganizar o conceptual branco, no Museu de Lisboa. Sabem que há muito, ainda por questionar. “Portugal ainda está em negação”, diz Nael citando novamente Grada Kilomba, uma referência indispensável paa compreender este processo.

Janga sugere que essa negação se prenda, de certa forma, “com a questão do classicismo”. “Nós estamos num contexto de um país que é pobre, na grande maioria, creio, e quando entras nesse tipo de discurso decolonial que é afeto a bué gente, as pessoas ficam bué ‘vocês estão-se a queixar, e eu passo exactamente pelo mesmo que vocês’; as pessoas não conseguem fazer a distinção. Eu, pelo menos aqui, sinto que tens um contexto muito específico que não tens noutros sítios, e há toda uma instrumentalização de pessoas brancas de classe baixa, que provavelmente são, de todas as pessoas, as que têm um discurso mais agressivo, mais violento e mesmo de ataque. Porque, de alguma forma, elas foram levadas a acreditar que a culpa da condição delas é tua [nossa]”. 

Além da imposição da culpa, Emanuel acrescenta a “romantização do sofrimento de um povo”. “A sociedade portuguesa nos últimos tempos tem mostrado isso, não adianta o número de pessoas que reclamam, simplesmente romantizam os acontecimentos históricos e dizem que “não, está tudo bem, vocês estão a ter uma visão errónea”. Mas já são mais de 1 milhão de pessoas a terem uma visão errónea, será que somos mesmo nós que estamos errados? Ou será que o país em si é que não quer aceitar, social e institucionalmente, as atrocidades que tem a ver com o ao longo da história?”, questiona. Quem lhe responde é Janga, acrescentando mais uma camada à reflexão: “quando tens uma memória que toda a tua vida te disseram que foi correta, qualquer pessoa que te diga que isso é errado vai gerar uma posição de confronto”. “Tu podes não fazer nada para procurar esse confronto mas enquanto a parte política, estrutural, não abordar esse problema, a resposta vai sempre ser de ataque, porque é a única resposta que as pessoas acham que é justificada — é a intimidação.”

Através da celebração, a Fonte desconstrói o pensamento coletivo dominante — a história única, o “certo e errado”, as vozes que se erguem sobre outras há séculos. “Nós estamos sempre a tentar puxar o lado que não é falado e talvez recontar um bocadinho a História. Não de uma forma manipulada, mas de uma forma em que há a clareza dos acontecimentos, tentar trazer não uma referência que é única, porque ninguém é detentor de todo o saber, mas trazer várias referências”, diz Emanuel. Ainda que se debata cada vez mais o projeto colonial e os seus efeitos, a seu ver, Portugal ainda não passou pela mudança necessária, sobretudo a mais importante: a revolução das mentalidades. “Eu sinto é que há uma mudança no nosso meio, em que nós cada vez mais procuramos não educar quem não quer saber, mas educar quem está disposto a. Especialmente educar os nossos, caminhar connosco, com os nossos, e tentar trabalhar com os nossos. E não prestar tanta atenção a quem não nos quer bem. O Movimento Negro em Portugal, hoje em dia, está muito mais ativo, as comunidades comunicam muito mais umas com as outras”, salienta. 

E como tudo está ligado, regressámos à conversa sobre “Bairros como Zonas de Resistência”. “Os bairros interagem muito mais uns com os outros, identificam-se uns com os outros, tentam resolver os problemas uns com os outros em vez de haver aquele separatismo e aquela rixa que se via. Ontem estávamos a falar da Quinta do Mocho, e a Quinta do Mocho tinha a fama de ser um bairro super problemático e violento, mas não era um bairro violento, era um bairro que estava a ser violentado. É isso que começamos a entender cada vez mais e mais: que nós não somos agressivos, estamos a ser agredidos. Nós não somos negligentes, estamos a ser negligenciados. Nós não somos burros nem não procuramos o conhecimento, simplesmente somos postos de parte. Cada vez mais eu sinto que se nos metem de parte, nós agarramos em nós e levamo-nos para o caminho que achamos que é o mais correto sem ter que nos preocupar com o que a comunidade em geral vai dizer.” 

As palavras de Emanuel lembram-nos, inevitavelmente, a frase de Victor Hugo que nos diz que “não existem ervas daninhas, apenas maus cultivadores”, que aparece no final do filme Les Miserábles, de Ladj Ly. Esse cultivo expressa-se de muitas formas, através de “monumentos” cristalizados no tempo e que, como lembra Henrique, “são apoiados, reforçados, e todos os anos são renovados e aceites”. Quando fala em “monumentos”, não se refere apenas às estátuas que exaltam figuras coloniais — que tanto se tem debatido se fará ou não sentido demolir —, mas a monumentos simbólicos institucionais e profundamente enraizados na sociedade portuguesa.

“As pessoas usam marcos, quando acontece algo grave, e há um pico de consciencialização e depois volta tudo ao normal com pequenos avanços. Quando pegas na construção da palavra racismo, em si, como sociedade a esmagadora maioria das pessoas em Portugal vai concordar que o racismo é uma cena errada, mas se pedires para as pessoas estruturarem o que é, ou quais são as razões, elas não sabem ou não aceitam que lhes digas o que isso é. O progresso só vai até onde vai o conforto das pessoas. Quando as pessoas sentem que esse progresso está a começar a afetar as partes em que estão confortáveis, começa a estagnar. Acho que vai-se avançando muito, muito lentamente, mas não podemos dizer que houve um grande avanço. Acho que as pessoas têm picos de consciencialização porque se torna tão gritante na cara delas, que não conseguem ignorar. E nessa altura começam as performances, querem imenso saber e depois volta ao habitual”, partilha Janga.

Há um ano, centenas de pessoas saíam à rua para dizer que Vidas Negras Importam, num gesto universal que partiu da América mas enviou força para o resto do mundo. Sabemos, nas palavras de Audre Lorde, que “a revolução não é um evento único” e Nael diz-nos que o que está a acontecer hoje (a própria existência da Fonte) se deve ao caminho que os seus ancestrais fizeram. “Ao longo dos tempos estamos a deixar esse pensamento colonial, a nos afastar, a ter um pensamento contra-colonial. Agora, o contexto português, de um modo geral, a raiz do problema ainda está lá”. Nael sublinha que a geração da Fonte caminha com o legado dos seus ancestrais, com a certeza de que há coisas que não vão aceitar mais.

Como Laima explicava, em grande parte dos contextos existe um white gaze que espera que as pessoas negras tenham de provar o que são capazes de fazer. Emanuel relaciona esse enquadramento com a capa “Portugueses de Bem”, que o Record fez quando Pichardo e Patrícia Mamona venceram provas de triplo salto nos Europeus de pista coberta. “Isso significa que tens sempre que provar alguma coisa. Eu vi isso também no espetáculo do Tristany [no São Luiz]: era um espaço branco, aceitaram o desafio, mas as pessoas estavam quase como deslumbradas com como é possível alguém da zona que ele é, vestido como ele está, fazer uma coisa daquelas. É super bom, mas ao mesmo tempo eles não querem aceitar a pessoa em si, só querem aceitar o conteúdo que a pessoa traz. Isso não é mudança. Se é uma mudança, é uma mudança que nós não queremos. Não adianta eu ser um grande futebolista, mas quando preciso que me vejam não como um futebolista mas como uma pessoa, não me querem ver. Eu sou um atleta de alta competição e quando quero que me vejam como uma pessoa negra, não me querem ver. Só me querem ver como uma pessoa de alta competição. Então, que mudança é essa? Que mudança é essa que só é uma mudança quando é conveniente?”

O encontro de hoje, no Museu de Lisboa, é mais um convite à mudança. E aos poucos, a Fonte vai contribuindo para que se desorganize o conceptual branco — mas, acima de tudo, para que se celebre o conceptual negro.

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  • Carolina Franco

    Carolina Franco tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e está a completar mestrado em Antropologia - Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.

  • João Gabriel Ribeiro

    O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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