Covid-19: Snowden deixa alerta sobre decisões em momentos de pânico

Snowden via CPH:DOX

Covid-19: Snowden deixa alerta sobre decisões em momentos de pânico

Snowden alerta para o facto de estarmos a ser conduzidos para um mundo em que o pânico motiva as decisões e em que algoritmos ganham terreno na execução do poder.

Nos dias que correm, as notícias falam-nos quase todas de uma guerra ao novo coronavírus, responsável pela nova doença, Covid-19. Entre as estratégias que se propõe destacam-se os múltiplos exemplos em que a tecnologia é usada para controlo da epidemia, sem que se reflicta profundamente sobre as implicações que abrir este precedente pode ter. Assustados pelo surto pandémico que só encontra paralelo nos livros de história, os governos apressam-se a tomar as medidas ao abrigo de um estado de excepção e vem novamente à tona o complexo paradoxo em que assentam sociedades livres. Preferimos segurança ou liberdade?

Foi sobre isso que Edward Snowden falou a convite de um festival de documentários que era para decorrer em Copenhaga mas acabou por ter transmissão global através do Youtube. Snowden começou por ironicamente dizer que o auto-isolamento e o distanciamento social não são novidade nenhuma na sua vida, e elogiar o potencial da internet em tornar possíveis estas conversas, mesmo com o mundo em clausura, para rapidamente nos conduzir por mais uma das suas revelações sobre vigilância dos estados.

A pergunta do entrevistador dinamarquês situou a conversa que partiu de um paralelo com o 11 de Setembro, uma data particular para Snowden que, num contraste das duas histórias, mostrou os efeitos adversos do pânico numa perspectiva social sobre as crises. O princípio da conversa foi dedicado aos termos técnicos, como uma explicação de Snowden do que são metadados e esclarecer um ponto fundamental — quando se fala em utilizar a localização e monitorizar os telemóveis, fala-se em mais do que usar o seu sinal, em usar a localização obtida través da triangulação das redes telefónicas, mesmo em casos em que o telefone esteja com os serviços de localização desligados.

“Se consegues receber uma mensagem, estás ligado à rede e és localizável. E isso é feito por várias operadoras em vários países, porque não há nada na lei que o impeça.”

É a partir deste pressuposto que surge a questão sobre a partilha dos dados com os governos – algo que para Snowden levanta questões éticas e o tal ângulo de comparação com o 11 de Setembro. Snowden começa por explicar o que têm de diferente e semelhantes os dois casos — entre as semelhanças, o whistleblower aponta o facto de serem crises graves e produtoras de pânico; quanto às diferenças mais evidentes, destaca o facto de ser um elemento da natureza e de os efeitos serem globais, não restritos a uma cidade ou a um país.

A disseminação do pânico faz com que em vez de os esforços securitários se concentrarem num só ponto do globo, a subscrição deste tipo de medidas surja em vários países, na boca de vários políticos e outros especialistas, como médicos e epidemiologistas, com um papel central nesta crise. Para Snowden, a primeira grande questão é sobre se isso funciona realmente, para além da teoria – e até que ponto esse equilíbrio justifica a tomada das medidas. Neste ponto importa relembrar que Snowden não fala enquanto epidemiologista mas como uma das figuras centrais da luta pela privacidade dos indivíduos e é nessa condição que devemos contemplar a sua opinião – como referimos noutros artigos, as crises implicam respostas multidisciplinares e é nesse exercício de busca por um compromisso intelectual satisfatório para todos que devemos ponderar as várias posições.

Snowden lembra-nos que no caso da monitorização contra-terrorista o falhanço foi evidente, referindo que nesta crise até podem haver casos de sucesso mas que a questão que se segue é: até que ponto estes sistemas são confiáveis. Um dos pontos sensíveis tem a ver com a identidade dos dados – embora muitos garantam que a recolha é feito de forma anónima, como Snowden já havia recordado na entrevista a Joe Rogan, não existe tal coisa como um telemóvel anónimo. Edward explica que o cruzamento do IMEI (International Mobile Equipment Identity) com o IMSI (International Mobile Subscriber Identity) permite às operadoras identificar com alguma precisão o indivíduo a que pertence um telemóvel, algo que pode ser forçado pelos Estados numa segunda instância.

Focando a conversa no tema do momento, o Covid-19, Snowden começa por aconselhar o texto de Yuval Noah Harari, publicado no Financial Times. À boleia desse mesmo texto, sublinha a seriedade do problema que representa o coronavírus mas, especialmente, o seu caracter transitório, articulando com a ideia de que as decisões que tomarmos agora podem não o ser.

“Eu acho crucial ter em mente a perspectiva de que numa sociedade livre um vírus é perigoso mas a destruição de direitos é fatal. É algo permanente que não voltamos a ter.

Se temos um direito pelo qual fizemos uma revolução ou se fez um movimento, que demorou 100 anos de esforço para conquista e depois o perdemos num momento de pânico – essa é uma ligação com o 11 de Setembro, onde nasceu o Patriotic Act e a vigilância em massa.”

Snowden recorre à sua própria história para revelar como o pânico pode ser enganador. Para si, a questão é simples: a racionalidade sai quando o pânico entra; e o injustificável parece uma forma legitima de nos proteger. Foi num desses movimentos que se juntara ao Exército Norte-Americano, sobre o qual anos mais tarde viria a fazer as revelações que lhe concedem o estatuto actual. Ao contar levianamente esta história, Snowden recorda como no momento de pânico, pós-11 de Setembro, aquela lhe parecia a coisa certa a fazer, até descobrir os podres que escondia.

O ponto seguinte no discurso de Snowden foi sobre o carácter excepcional, ou nem por isso, dos Estado de Emergência. Questionado pelo entrevistador directamente sobre a suspensão temporária de direitos, Snowden foi peremptório respondendo com outra pergunta: “Quando foi a última vez que viste uma suspensão breve das liberdades civis?”, reforçando em seguida a ideia de que o estado de emergência tende a perdurar, por uma certa afeição das autoridades aos novos poderes adquiridos.

“O coronavírus passa, o terrorismo já não é uma grande ameaça, mas as autoridades encontram novas aplicações, novos usos para o poder. E pensam, talvez não tenhamos de abdicar deste poder, talvez possamos passar uma nova lei e torná-lo legal. E já vimos isto a acontecer, em vários países.”

Snowden descreve os momentos pós-crise como indutores de uma cultura de “segurança a todo o custo”, em que os estados se propõem a reduzir os riscos ao mínimo nível imaginável. É neste ponto que recorda o paradoxo entre segurança e liberdade que tanto paira sobre as suas intervenções – reforçando o seu ponto de que não devem ser sacrificadas liberdades.

Posteriormente, o entrevistador sugeriu que se falasse de Inteligência Artificial, justificando a mudança de tema com o inicialmente programado – Snowden fora convidado a propósito da apresentação de um filme norueguês sobre o tema, iHuman. No início da sua resposta sobre este tema, o americano foi contundente dizendo que nesta área, da IA, se prometem coisas impossíveis, baseadas no argumento da eficiência. Ora, para Edward Snowden, o argumento da eficiência é perigoso para as sociedades livres, uma vez que torna mais arbitrário o exercício do poder baseando-o numa inferência probabilística.

Neste ponto Snowden debruça-se sobre o equilíbrio em que funciona a justiça nas sociedades livres, lembrando os trâmites processuais que antecedem o exercício do poder – como a presunção da inocência, a necessidade de provas e de mandatos para executar detenções, de julgamentos para determinar prisões, etc.

“Nós jogamos todas as cartas contra o poder (…) Demasiado poder em poucas mãos chama-se tirania.”

Voltando ao assunto do mobile tracking que dominou toda a conversa por força das circunstâncias, voltou também a pairar sobre o assunto o sensível equilíbrio entre segurança e liberdade. O moderador referiu que uma das utilizações possíveis podia ser simplesmente a deteção de aglomerados em torno de antenas, algo com que Edward Snowden concordou mas que apenas serviu de rastilho para a reflexão mais profunda da sua preleção. Para Snowden, a questão não é apenas se algo funciona mas qual o preço a pagar por essa eficiência.

Neste caso concreto, Snowden teme que estejamos a passar por uma fase de transição na vigilância que é exercida sobre os cidadãos; e explica-o, referindo que até aqui os estados procuravam ter uma informação sobre o ‘exterior’ dos indivíduos mas que a partir daqui poderiam querer ter acesso a interior, recorrendo a informação, por exemplo, recolhida através de wearables, alertando para os potenciais cruzamentos entre os dois tipos de informação. Snowden recorda que já sabem onde clicamos, o que vemos e fazemos online, e que o cruzamento com informações sobre, por exemplo, a nossa pulsação, pode levar as autoridades a fazer inferências sobre as nossas reações – dando o exemplo de que este método pode servir para inferir a reação de determinada pessoa, por exemplo, a um vídeo de propaganda política. Continuando o raciocínio, Snowden alerta que se estas medidas securitárias forem aplicadas, as suas consequências podem ser difíceis de travar, lembrando que seria difícil que as pessoas se pudessem juntar de forma discreta uma vez que os telemóveis estariam a ser localizados pelas autoridades.

“O que acontece quando ao longo do curso de uma geração construíste a arquitectura de opressão (…) e de repente há uma eleição e tens um Donald Trump no poder. E as coisas pioram e pioram.(…) E não tens poder civil para lhe resistir, porque se as pessoas se juntam num parque para discutir política ou cantar, ou o que seja, a polícia pode já lá estar.”

Snowden alerta para o facto de estarmos a ser conduzidos para um mundo em que o pânico motiva as decisões e em que os algoritmos ganham terreno na execução do poder.

No final, a conversa virou-se para as questões do público, mais suaves por natureza. A primeira foi sobre optimismo. Snowden foi mais uma vez peremptório dizendo que, no que toca a frequência de guerras ou crises de saúde pública, estamos melhor do que nunca na história, apesar de termos problemas graves como a crise climática, a desigualdade social ou a discrepância de poder entre governos e governados ou mesmo entre gerações. Voltando ao assunto do momento, Snowden destacou positivamente a capacidade de coordenação global e partilha de técnicas e ensinamentos, entre as várias cidades e países; alertando no final que os riscos são inerentes ao progresso e à existência de poder – para Snowden, o poder implica sempre que possa ser mal utilizado.

A questão seguinte foi sobre a desinformação e a acção das empresas tecnológicas sobre esse particular, uma posição que Snowden refutou dizendo que não devíamos esperar acções das empresas tecnológicas para resolver estes problemas porque isso seria pô-las numa posição de decisores sobre a verdade que não lhes deve ser atribuída, reforçando os seus poderes que já são enormes. Para Snowden é evidente que se for o Facebook a decidir o que deve ou não ser considerado verdade, o mais provável é que decidam em função do que é melhor para si e não do que é melhor para a sociedade, subvertendo no longo prazo a responsabilidade que lhe fora atribuída. Para dar a sua perspectiva sobre o fenómeno da desinformação estabelece uma analogia com os vírus e a imunidade adquirida – alertando para o facto de estarmos perante novos desafios da comunicação que implicam o desenvolvimento de um sentido crítico de análise de informação, superior ao necessário até agora.

Snowden lembrou ainda os tempos remotos da internet onde era preciso ‘provar’ aquilo que se dizia mais do que tentar tornar viral as informações; alertando para as mudanças que a Internet sofreu, no geral, a partir do momento em que se tornou um espaço comercial. Snowden não tem dúvidas ao dizer que o espaço outrora criativo e cooperativo passou a ser dominado pelas regras de mercado, da competição e luta pela atenção.

“Quando um bem comum se torna numa espécie de desporto sangrento em que uns se comem aos outros e a atenção é o prémio, as pessoas vão fazer coisas más de forma a ganhar.”

A conversa terminou com as notas de Snowden para o futuro e a garantia de que continuará a fazer a sua investigação direcionada à vigilância dos telemóveis, escrutinando a infraestrutura montada em nome do progresso e, neste caso, da facilidade das comunicações, referindo que por muito que se goste dos governos é preciso assumir que o seu exercício é um esforço constante e que os seus abusos são normais, pelo que, para si, a única forma de construir uma governação melhor é através da dissidência, da discórdia e da resistência.

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  • João Gabriel Ribeiro

    O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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